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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

14 de março de 2015

Um tango argentino


            Na casinha amarela de esquina, quase invisível por trás do muro encardido, o velho toca-discos zumbia suavemente noite após noite, quase sem interrupção. Na sala de estar, Marcos Albuquerque observava Louis Armstrong girar no velho aparelho enquanto deixava-se desenhar pela agulha. Sentiu que aquela era noite de vinho, por isso abriu a garrafa de marca barata que havia encontrado no mercado do bairro. Pouco a pouco percebia aumentar a intensidade da pulsação de seu sangue nas veias, aquecido pelo álcool e pelo som do trompete. “Em momento como esse a vida é quase boa” pensou, percebendo que para ele seria possível morrer em paz ouvindo What a wonderful world. Respirou fundo, pegou o velho caderno de notas, abriu na página mais recente e adicionou o nome da música na coluna desenhada à direita e intitulada “mortes pacíficas”.
            Desde criança a relação de Marcos com a música era muito próxima. Nunca havia tomado aulas no conservatório da cidade e nem se dedicara a aprender nenhum instrumento, não tinha paciência para ordens e metodologias de professores ultrapassados. Em compensação, entendia a linguagem musical como ninguém e muitas vezes sentia que só podia se comunicar por essa. Tímido, retraído, trocava o convívio humano pelo contato com a música. Da nona sinfonia de Beethoven ao mais novo hit da cultura pop, era como se cada música expressasse perfeitamente seus sentimentos. 
            Na juventude teve oportunidade de cursar a faculdade de música, mas preferiu formar-se em Letras, afinal, aqueles acadêmicos da música realmente não sabiam o que diziam. Estudou, portanto, literatura e por um período acalentou a ideia de tornar-se escritor. Marcos até tentou, mas por mais que se esforçasse era incapaz de se expressar satisfatoriamente pelas palavras, as amava pelo seu som, mas perdia-as em seu significado. Arriscou-se na poesia, mas seus poemas concentrados apenas na sonoridade e sem se aterem ao sentido só conquistaram os críticos por um curto tempo. Além disso, a medida que ia amadurecendo, apenas o som das palavras não lhe satisfazia mais, era preciso algo além, e assim ele sempre retornava aos diálogos com a música.
            Até os cinquenta anos, a música para Marcos estava diretamente associada à ideia de vida. E assim parecia que continuaria se não fosse o acidente. Era um fim de tarde e ele voltava da padaria, enquanto atravessava a rua ouviu um som distante que lhe pareceu ser a Marcha fúnebre, de Chopin. Os poucos segundos em que parou para ouvir a beleza e o choro melancólico daquelas notas foram o suficiente para que um carro o atingisse. Embora os pães e geleias recém comprados tivessem sido fatalmente atingidos, Marcos sobreviveu. Depois de alguns dias de recuperação no hospital, recebeu alta e foi aconselhado a retomar sua vida normalmente, mas que tivesse mais cuidado ao atravessar uma rua. No entanto, ele interpretara o episódio como um sinal, sabia que a morte estava próxima, rondando como um cão faminto, esperando um simples momento de distração ou fraqueza. A ideia de partir sem deixar nenhum registro de sua estadia no mundo lhe tirou o sono nos dias que se seguiram. Era preciso mostrar que existiu, deixar um sinal, ainda que insignificante, de que algum dia também fez peso na terra repisada por gerações e gerações.  Foi quando percebeu o quanto parecia assustador o silêncio da morte, nenhuma música que pudesse traduzir seu interior, nenhum som com o qual conversar pelas horas longas e escuras. Decidiu então que, a partir daquele momento, se dedicaria a criar uma lista com as músicas que deveriam tocar no seu velório. Mas não uma lista qualquer, afinal, em sua cabeça, as músicas selecionadas soariam em sua alma pelo resto da eternidade. Cada faixa da lista deveria ser perfeita e condizer com a forma como ele morreria, aquela seleção deveria ser sua obra-prima. A partir daquele momento, a relação dele com a música se modificaria completamente, ela ainda seria vital, mas assumiria, contraditoriamente, um aspecto fúnebre que pouco a pouco deixaria de alimentar Marcos para consumi-lo.
 Logo que teve a sua grande ideia, separou um velho caderno de capa preta, antes usado para suas poesias, para anotar a lista. Arrancou as páginas já usadas, as embolou em uma gaveta qualquer da escrivaninha, e riscou as páginas em branco, dividindo-as em duas colunas: “mortes pacíficas” e “mortes dolorosas”. Mas logo achou essa classificação muito ampla e decidiu que, a cada nome de música adicionaria notas explicativas relacionadas ao tipo de morte com a qual mais combinariam. Adicionou a primeira música: Marcha fúnebre, Chopin, “mortes dolorosas”, especificações: “morte por atropelamento”, afinal, aquela que dera origem à sua empreitada merecia ser homenageada. Naquele dia, sentou-se na poltrona da sala e ouviu discos a procura das músicas perfeitas até o amanhecer. Adicionou Construção, Chico Buarque, coluna “mortes dolorosas”, especificações: “cair do último andar; ser esmagado pelo cotidiano e pelas injustiças sociais; ser empurrado da construção pelo sistema”. Melodia Sentimental, Heitor Villa Lobos, coluna “mortes pacíficas”, especificações: “morrer dormindo, morrer durante doces sonhos noturnos”.  Preciso me encontrar, Cartola, “morte dolorosa”, suicídio. Ne me quitte pas, Jacques Brel, e L’amour est un oiseau rebele, Bizet: “morte dolorosa/ morte pacífica”, especificações: “morrer de amor”.
Marcos tornou-se obcecado com a tarefa musical e com a ideia da morte, cada nota que ouvia agora lhe soava dura aos ouvidos, mas ao mesmo tempo mais compreensiva e íntima. Com o tempo, a morte instalou-se em sua casa, tomou posse dos cômodos e passou a observa-lo durante todos os segundos do dia. Quando saía de casa, lá ia ela, seguindo-o de perto, respirando em sua nuca, respiração com cheiro de amêndoas amargas, cantarolando a lista fúnebre que só crescia.
Ele não era de fazer amizades, nem mesmo na infância, as pessoas lhe davam preguiça e pareciam intraduzíveis. Exceto pela música e pela morte, vivia solitário, se isolara dos parentes e ignorava a vizinhança. Mas mantivera um ou dois colegas da época de suas incursões no mundo literário. Meses depois do evento que desencadeara sua obra de vida e morte, um desses colegas, professor de literatura brasileira com quem conversara algumas vezes, lhe telefonou. O professor conseguira ingressos para o concerto de uma famosa pianista e, lembrando-se da fixação do colega pela música, pensou em convidá-lo para assim colocarem o papo em dia e trocarem informações a respeito das novidades no campo literário e no meio musical. Ao menos foi o que ele disse a Marcos pelo telefone.   
Sempre tentado a mergulhar na selva de sons e ritmos, Marcos aceitou o convite, embora em um primeiro momento se sentisse muito pouco disposto a permanecer no mesmo espaço que outras pessoas, dividindo o mesmo ar, esbarrando-se e disputando, com olhos e narizes, quem absorveria mais daquela expressão de beleza. E de fato, logo que chegou ao local do concerto, Marcos foi tomado pelo pânico de se perder em meio àquela multidão uniforme de ternos pretos e vestidos bem passados. Enquanto o colega falava animadamente sobre os mais novos poetas queridinhos da crítica, entupidos com teorias e discursos pretensamente transgressores, Marcos dirigia-se rapidamente para seu assento, sem nem mesmo se dar ao trabalho de continuar a acenar a cabeça e resmungar “hum, hum” vez ou outra. Assim que conseguiram sentar, ele tentou se acalmar, sabia que assim que a música começasse a multidão ao seu redor, as conversinhas superficiais, os rostos iguais que lhe lembravam máscaras de cera, desapareceriam. Ele seria transportado para algum lugar feito só de sons, onde a vida parecia fazer sentido. Quando o concerto começou, Marcos fechou os olhos e respirou fundo tentando exalar aquele cheiro que só o ar preenchido de música adquiria, pronto para adentrar naquele lugarzinho único na sua mente.
Mas dessa vez havia algo de diferente, o quadro em sua imaginação murchava, desmanchava-se escorrendo em gotas cinzas, os ritmos não coloriam mais o ar, pareciam estéreis. Ele sempre tinha sido um espectro entre os homens, apenas a música lhe agitava o sangue e trazia vida, mas agora ela também tornara-se parte do mundo estéril e morto. Marcos não sentia mais seu sangue pulsar, a cada toque dos dedos da pianista nas teclas ele sentia seu corpo se decompor, como se cada nota produzida fossem vermes que lhe devoravam a carne e as entranhas. Apavorado, expulso de seu paraíso, percebeu que havia provado do vício que agora intoxicava sua mente. Sabia que sua relação harmônica com a música nunca mais seria a mesma, que entre eles, como em um triângulo amoroso, impusera-se uma terceira figura, tão forte quanto a música havia sido todos esses anos, a própria morte.
Ao chegar em casa, contemplou mais uma vez seu caderno, agora com as páginas totalmente escritas. A obra da sua vida quase finalizada. No único espaço em branco, no pé da última página, acrescentou em letras trêmulas: Requiem, Mozart, “morte dolorosa”, especificações: morte causada por uma escolha errada; obsessão; vício; veneno disfarçado de remédio, phármakon.   
Deitou-se logo em seguida, suando frio, tomado de melancolia e medo. Não levantou mais pelos próximos dias.  Sozinho, contorceu-se de febre por longas noites, nos lençóis empapados de suor. Devido a temperatura alta tinha alucinações em que a morte o amamentava e ninava-o com as músicas de sua própria lista. Sabia que ia morrer em breve, porque percebeu que aos poucos começava a gostar do sabor do leite que a morte lhe dava do peito pálido. Uma semana depois a febre enfim cedeu. Mas a sensação que tivera durante os momentos de alucinação não o abandonara, o gosto de leite azedo, com um leve fundo de amêndoas amargas, continuava em sua boca.
Assim que se sentiu mais disposto levantou-se da cama, tomou um longo banho e escovou os dentes esfregando a língua freneticamente. O gosto, contudo, permanecia. No dia do acidente, meses antes, a morte o chamara através de Chopin, utilizara sua paixão e vício para seduzi-lo e ele atendeu ao chamado. Sem se dar conta a acalentara com as melhores músicas de sua coleção, mais tarde a convidara para sua casa, a levara consigo para cada canto, cada linha de seu caderno era a história dele e dela, a trilha sonora dessa relação que se estabelecera, e agora ele havia tomado de mamar dos seios da sua nova amante. Sabia que não haveria volta, que estavam ligados por líquido, carne e música. O gosto na língua intensificava-se e o seu peito começou a doer. Pegou o caderno, guardou-o cuidadosamente em uma pasta e, carregando-a, saiu. Dirigiu-se calmamente para o hospital, sem saber exatamente porque isso ainda parecia necessário.  Por medo de morrer sozinho, talvez? Ora, mas ele já não estava mais sozinho. 
  No hospital, fizera inúmeros exames e ao fim de cada um o médico responsável parecia mais sério. Todavia, Marcos sabia que só sairia de lá de mãos dadas com sua fúnebre parceira. Ao final da sucessão de ressonâncias, radiografias, de agulhas espetando seu corpo e fluidos sendo extraídos e analisados, o médico o chamou para sentar-se na cadeira em frente à mesa. Antes que dissesse qualquer coisa, Marcos o interrompeu: “ainda é possível fazer algo, doutor?”. Esse balançou a cabeça com calma e tentou um sorriso de consolo: “-Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”. Marcos pensou: Invierno Porteño, Piazzolla, “morte pacífica”, especificações: ...
 Tirou, então, o caderno da pasta, o abraçou, mas não anotou a última música.