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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

13 de maio de 2015

Segredos marítimos

Estávamos em um barco à mercê das ondas. Era a primeira vez que me encontrava em alto-mar e a sensação resumia-se à total embriaguez, fosse pelo encanto que a vista me proporcionava, fosse pelo enjoo causado pelo balançar do barco. Enquanto adentrávamos cada vez mais longe no mar e a faixa de areia desaparecia para dar lugar a uma imensidão de água salgada que nos cercava por todos os lados, eu, com a curiosidade felina de quem se depara com algo pela primeira vez, observava hipnotizada como as cores da água mudavam de um verde transparente para o mais profundo azul. O vento soprava forte, mas amoroso, aliviando o calor do sol que ardia a minha pele e, tal qual um guia que busca proporcionar a apreciação total da paisagem, retirando os fios de cabelo que sempre insistiam em cair nos meus olhos.
Eu estava feliz. Dona de uma paz que naquele instante enganava ser inabalável. Apenas eu e o mar, em plena harmonia, troca e fluidez. Em mim, eu parecia ser capaz de sentir os movimentos da Terra. Eu me movia no ritmo do mar e do vento, oscilávamos ao som do mesmo balanço. Eu e o todo, nesse momento que jurei eterno, éramos um só. Eu respirava o mundo, sua integração perfeita, seu perfume de todas as flores e frutos. Eu era apenas e acima de tudo uma célula mínima e pulsante daquele corpo de eras. Pela primeira vez sentia-me completa, em mais puro êxtase, porque de algum modo, parte de mim se conectara a tudo, do mar ao céu, dos corais que aquelas águas escuras escondiam às rochas que se apresentavam diante dos meus olhos. A parte de mim que era vazia preencheu-se de vida nova e pura, julguei-me herdeira e partícula do mundo. Eu era dona do mar e das rochas eternas e, ao mesmo tempo, eu era o próprio mar e as próprias rochas.
Ainda hoje não sei porque tudo mudou, mas de repente, o que era paz e perfeita comunhão rompeu-se. Olhando as águas profundas percebi o quanto aquele azul escuro era ameaçador. Tive medo. O mar me pareceu sufocante, porque agora ele aparecia perante mim como um véu denso e sombrio que ocultava um número incalculável de mistérios e perigos. Logo abaixo de mim existiam milhares de vidas e segredos que eu não podia enxergar ou sequer imaginar. Inúmeras criaturas em constante luta pela preservação, pelo afirmar da própria existência, ocultando-se na falsa aparência de harmonia da superfície do mar. O movimento constante das ondas nada mais era que um disfarce para toda a vida e morte que borbulhavam em suas profundezas, vida e morte que a qualquer momento poderiam romper o véu de ondas que as separavam e ocultavam de mim.
E então já não estava mais inebriada pela beleza marítima, mas sim por todo o seu potencial ameaçador, por tudo de novo e desconhecido que daquele véu poderia surgir. Não mais me maravilhava com seus segredos milenares. Aterrorizava-me com seus enigmas, com a impossibilidade de conhecer qualquer coisa além do véu das águas, além do véu do futuro e além do véu do meu próprio ser. Hipnotizada pelo mais denso azul que já vira, eu senti um pânico que jamais havia conhecido. A visão do mar me sufocava, mas eu era incapaz de desviar os olhos mesmo que pelo mais breve instante. A tomada de consciência de que aquilo que segundos atrás eu admirará e acreditará parte de mim, na verdade era apenas uma superfície que escondia dos mais belos aos mais tenebrosos enigmas, fez com que eu pensasse em tudo aquilo que não me fora dado saber. De repente, eu me dava conta de que dentro de mim existia um mar que, como aquele com o qual meus olhos se deparavam, escondia todo um cardume de segredos. Aquilo que eu mostrava aos outros era apenas a superfície ondulante de mim mesma, somente as águas rasas perto de todo o resto que eu era e nem ao menos compreendia.
 Ignoro se o que me causou pânico foi o fato de não conhecer as coisas que mais fundo se escondiam em mim, ou se foi a possibilidade de descobrir dentro de mim qualquer coisa de terrível e indesejado. Só sei que eu tremi e não quis ser mais do que apenas superfície, não queria adentrar em meu ser nem sequer um centímetro de profundidade. Mas era tarde demais, descoberta a luz já não poderia viver sem ela. Não poderia esquecer, eu era camadas e camadas de água. Água densa e escura, que escondia dentro de si brilho e sombra, pureza e sujeira, o belo e grotesco. Em um ato impulsivo, coloquei-me de pé e de olhos abertos mergulhei no mar.
 No silêncio que se encontra apenas debaixo d’água procurei enxergar o máximo que minha limitada visão humana permitia, mergulhando cada vez mais e mais fundo, surpreendendo os segredos que as águas ocultavam. Muitos passavam diante de meus olhos turvos sem que eu os notasse, outros se escondiam em profundidades inalcançáveis, porém alguns, ainda que mínimos, eu fui capaz de encarar.