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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

6 de abril de 2015

Passatempo


No início de tudo, quando terra, céu e mar ainda se confundiam em meio ao caos inicial, três deusas foram criadas a partir das rochas cinzentas. A elas foi destinada a tarefa de cuidar daquilo que viria a se chamar “tempo” e para que não houvessem disputas, dividiram-no em três partes iguais: passado, presente e futuro.
  Como foram talhadas em pedra, essas lindas deusas nasceram frias, ásperas e cruéis, de forma que passavam os dias brincando com o tempo da Terra sem nenhuma piedade. Divertiam-se sobretudo dançando com as linhas que amarravam cada uma das três partes do tempo aos seus tornozelos. Quando faziam isso, passado, presente e futuro se misturavam, formando nós, desenhos e bordados, mostrando que no fundo, podiam ser uma coisa só.
No entanto, a cada vez que moviam a roda do tempo por meio das linhas em seus pequenos e ásperos tornozelos, notavam que rachaduras surgiam em seus rostos. No começo eram finas, quase imperceptíveis, mas aos poucos tornavam-se mais grosseiras, como erosões em suas belas faces de pedra. Vaidosas, a função sagrada de fazer correr as eras, passou a amedronta-las. Ao se perceberem envelhecidas e com os corpos cobertos de marcas, as três deusas quase desistiram de seu lugar divino, preferindo talvez fundir-se novamente às rochas que as pariram.
Foi quando descobriram na Terra a existência de criaturas de aparência semelhante à dos deuses, mas que em sabedoria e comportamento igualavam-se aos animais. Perceberam, naquele momento, que podiam manter seus belos rostos intactos, desde que ao correr de cada dia sugassem um pouco da vida daqueles animais tão semelhantes e, ainda assim, tão distintos delas. Desde então, as três deusas do tempo ganharam juventude eterna, enquanto os míseros homens passaram a definhar dia após dia, até a morte.  

3 de abril de 2015

Improviso

Acordo, num repente.
Um mergulho na luz cega.
Minha saliva cheira a damasco
Damascos doces, damascos amargos.
Amoras doces, amores amargos.

Cuspo sabores e odores
No prato vazio,
Na pele cinza
Do seu corpo vazio,
Raso, mal passado.

Saio ao ponto,
Bem em ponto.
Tranco a porta.
Cheiro a amoras passadas.
Amores passados.