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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

21 de dezembro de 2014

A pequena história de como Dolores comeu seu próprio coração

Dolores entrou na cafeteria, sentou-se na mesa mais afastada e sem consultar o cardápio pediu para a garçonete uma fatia de "amor em pedaços", apenas pelo prazer de degustar algo que traduzisse seu estado de espírito. Junto com o café forte e amargo, comeu a sobremesa em pequenas porções, mastigando lentamente, saboreando cada encontro da massa doce com suas papilas gustativas. Fazia-o em uma tentativa masoquista de imaginar em cada pedacinho mastigado uma parte do seu coração.
Demorou uma hora para finalizar todo o processo. Assim que terminou de raspar o prato, lambeu delicadamente a faca, fazendo brilhar a arma utilizada em seu pequeno ritual de canibalismo. Levantou-se, ajeitou o vestido preto com gestos firmes e rápidos, pagou a conta e saiu com passos mecânicos do café, tendo a certeza de que tudo havia terminado: naquele exato minuto o seu coração encontrava-se no estômago, imerso em suco gástrico e dali há algumas horas o seu organismo iria expeli-lo para sempre. No dia seguinte morreu por causa de um infarto fulminante. 

15 de dezembro de 2014

Matrioshka

Nasci com uma irmã gêmea siamesa. Seu nome era Solidão. Solidão nunca chegou sequer à forma de feto, por algum motivo inexplicável, ela não se desenvolveu na barriga de nossa mãe, permanecendo apenas como uma minúscula semente, enquanto eu crescia egoísta e ávida por preencher todo o espaço macio e acolhedor daquele útero. Devido à falta de espaço causada pelo meu intenso desenvolvimento, Solidão acabou sendo incorporada por mim, instalando-se dentro do meu peito, como se fosse um caroço de fruta, e lá permaneceu. Assim, quando nasci, vim acompanhada da Solidão. Os médicos, assustados com o caso, tentaram convencer mamãe de que minha irmã deveria ser retirada de dentro de mim o quanto antes ou futuramente aquela semente, que jamais chegaria a ser alguém, poderia vir a me causar algum tipo de mal. Contrária a sacrificar uma de suas filhas, minha mãe se recusou a autorizar a operação, decidindo que as duas deveriam viver através do meu corpo.
Cresci, portanto, com minha irmã dentro de mim. Ela era quieta, calada e imóvel, mas às vezes doía e pesava mais do que todo o meu corpo podia aguentar. Solidão foi minha principal companhia durante a infância, dividíamos bonecas, brinquedos, vestidos e emoções. Inicialmente ela não me causava nenhum incômodo, nascera comigo, logo, o fato dela estar dentro de mim não me gerava estranheza, pelo contrário, me parecia perfeitamente normal. Logo que aprendi a falar comecei a ter longas conversas com Solidão e, ainda que inicialmente essas não fizessem sentido, tornaram-se um hábito. Ela nunca me respondia, apenas escutava e doía. Foi nessa época que nos tornamos grandes amigas, de forma que tudo o que me acontecia era detalhadamente relatado em voz alta para minha gêmea. Foi também nesse período que Solidão começou a me responder e a chorar no meu peito todo o vazio que sentia devido a sua vida de semente.
            Acostumamo-nos a brincar somente as duas. Inicialmente, as crianças da vizinhança batiam na porta de casa para me convidar para brincar na rua, convites que eu sempre recusava, por mais que mamãe insistisse. Tinha medo que as outras crianças não entendessem a natureza única e especial de Solidão e a excluíssem dos jogos, então, para protegê-la escolhi brincar apenas com minha irmã. Nossa brincadeira favorita era a ciranda, mas a verdade é que, com apenas um corpo para nós duas, o jogo acabava por parecer sempre incompleto, enquanto eu girava sozinha ao redor de mim mesma. Com o passar dos anos perceberia que minha vida inteira se resumiria nisso, uma dança desengonçada em par com a solidão.
            Conforme fui crescendo, comecei a sofrer as consequências da escolha que fiz. Minha irmã e nossos jogos de “faz de conta” não me satisfaziam mais, sentia falta das outras pessoas, de uma voz que viesse de fora e não apenas de dentro de mim. Mas Solidão, mal acostumada com os anos de dedicação exclusiva, tornou-se mimada, ciumenta e possessiva. A cada vez que eu me aproximava de alguém, Solidão começava a doer e choramingar. Quando entrei na escola, a possibilidade de me relacionar com inúmeros colegas só piorou a personalidade mesquinha da minha gêmea. Nunca me acostumaria com os choques que ela aprendeu a me dar sempre que percebia meu olhar direcionado para outro. Não sei se por causa das dores ou se por pena da minha irmãzinha, mas acabei desistindo, novamente, de me aproximar das pessoas.  A cada ano, os métodos de chantagem da minha querida irmã se tornavam mais elaborados e eficazes, Solidão se deu conta de que a possibilidade de acesso à minha mente era uma arma mais poderosa do que seus choquinhos infantis, percebeu que de dentro de mim, vislumbrava um mapa para cada um dos meus medos. Lá do meu peito, aquele maldito tumor me conhecia melhor do que eu mesma e suas ladainhas atingiam certeiras cada um dos meus pontos fracos. Cada vez mais manipuladora, ela assumia um jeito doce com o qual me lançava inúmeras dúvidas, nesses momentos ela tomava conta de meu corpo e eu é quem me transformava no caroço.
            Durante a noite, como se fossem canções de ninar, Solidão murmurava palavras de desconsolo nos meus ouvidos. Baixinho ela dizia que não importava o que eu fizesse, ninguém jamais me amaria, não como ela. Ela chorava dentro de mim e implorava que não a abandonasse. Fraca eu cedia a seus pedidos e acreditava em suas ameaças. Embalada por aquela melodia sentia medo de que no fundo ela estivesse certa... “Dorme, dorme, dorme meu anjinho...”
            Construímos uma fortaleza, eu e ela, e não sei quem sentia mais medo da muralha que nos apartava do resto do mundo um dia a cair. Mas Solidão tinha garras afiadas de dragão e as soubera cravar em mim sem erro, sem encontrar resistência. Nos atávamos uma à outra por correntes invisíveis e eu me iludia com a ideia de que costurar nossas vidas era vital à minha sobrevivência, de modo que eu não sabia mais dizer se a parasita era ela ou se era eu. Ela se entregava à tirania, e eu à comodidade.
            Lá pelos vinte anos eu adoeci. Tantos anos sugando uma a outra acabou por desgastar meu corpo até o limite. Caí de cama, e entre pesadelos e alucinações não quis mais me recuperar. Emagreci tanto que, pela primeira vez desde que havia nascido, meu corpo se tornou apertado para abrigar a mim e a minha irmã ao mesmo tempo. Nós duas passamos a disputar lugar naquele corpo fragilizado, que definhava mais a cada dia. Ela, apesar de apenas uma minúscula semente, era mais forte, sempre fora, e assim começou a ocupar o espaço do meu coração. No início doeu. Eu sentia meu coração sendo esmagado contra meu próprio corpo, sem poder reagir. Tive febres e convulsões de dor, mas não lutava, não reagia, apenas tremia e suava enquanto me via perdendo espaço e vida. Mas depois, depois não. À medida que Solidão expulsava meu coração e saía vitoriosa a dor ia desaparecendo e eu ia me acalmando, meu coração, enquanto ia deixando de existir, levava consigo todo o desespero e o peso que eu suportara desde então e que me fizeram sucumbir, deixando no lugar, agora, apenas um vazio, tão leve, tão doce. Até que, enfim, Solidão substituiu totalmente meu coração e a dor e a febre se foram de vez, junto com o desgaste e a angústia que me haviam colocado de cama e que certamente me levariam à morte. Solidão salvara minha vida.
            Demorei um tempo para me recuperar, para me acostumar com aquela nova sensação de alívio no peito. Mas dia após dia fui recuperando a cor e a vitalidade. Minha doença repentina havia sido um susto não apenas para mim, mas também para minha irmã. À sua maneira egoísta e obsessiva, Solidão me amava e tivera grande medo de me perder, mesmo que isso possibilitasse a oportunidade única dela, enfim, possuir exclusivamente meu corpo e viver por inteiro.
            Não sei bem se foi o episódio da minha doença ou o fato de Solidão agora ser meu coração, mas ela se tornou mais flexível, menos ciumenta, enquanto eu passei a me perceber mais forte, mais corajosa. Ao tomar o papel do meu coração, nós duas finalmente aprendemos a nos conciliar e sem os choros e chantagens de Solidão eu comecei, finalmente, a habitar o mundo que me cercava. No início tinha muita cautela, mas já sem os choques ao olhar para o outro. Contudo, apesar de aberta uma brecha na clausura em que me mantive por anos, Solidão jamais me abandonaria. Ela estaria sempre dentro de mim, mesmo enquanto eu estivesse nas multidões, como um desespero, um ponto doído que vez ou outra pede socorro. Ela era agora meu coração e minha força vital. Era, como sempre, parte de mim e nada poderia mudar isso. E eu já não meu importava. Independente de todos que pudessem vir a me cercar, Solidão sempre seria minha grande companheira de estrada. E para onde eu me virasse, ela também iria. Solidão seria o fardo que eu continuaria a carregar por toda a vida, e no dia, enfim, que a morte viesse me sorrir, ela também estaria lá, minha companheira fiel, para seguir comigo.          




24 de novembro de 2014

Senhoras e senhores, respeitável público...

Insetos no meu cérebro
Roendo, sugando, mascando.
Por seis dias eles se contorcem
E no sétimo descansam.

Por vezes me entopem os ouvidos
Me alheiam do mundo,
Por vezes ultrapassam orifícios
Me escorrem no chão.

Especialistas e abutres
Os coletam com suas pinças
Previamente esterilizadas
E os levam para análise.

Leitores e críticos,
Se armam com lupas, pipocas
Observam ávidos, curiosos
Os insetos que me devoram cérebro, cadáver, alma.

Insetos e vermes que apenas devoram,
Apenas contorcem-se
Seis dias por semana,
Mas no sétimo... no sétimo se cansam. 

10 de novembro de 2014

O aquário

          Acordei certa manhã com uma incômoda sensação de leveza, queria sentir o peso do meu corpo sendo direcionado ao centro da terra, mas ao invés disso, desde que havia me levantado era como se levitasse alguns milímetros do chão. Como o acordar sempre me fora árduo, acreditei tratar-se de um mal-estar passageiro, que logo se remediaria com uma caneca de café forte. Foi o que fiz. Trabalhava só a partir das nove, então, todos já haviam saído de casa quando me levantei e, como de costume, tomei o lanche da manhã sozinha. Comi torradas com manteiga e tomei café puro, sem açúcar. O alimento e o líquido escuro fizeram efeito imediato na minha mente e no meu humor sempre oscilante durante as manhãs, a sensação de leveza extrema, no entanto, não passou. Me sentia estranha, então voltei para a cama por mais alguns minutos, a impressão de estar embriagada e o calorzinho que o café deixara no meu estômago me fizeram cochilar. Acordei um tempo depois, atrasada e com a mesma sensação incômoda. Sem pensar muito, vesti a roupa passada na noite anterior e saí com pressa, sem tempo para me olhar no espelho ou para escovar os dentes. Chupei uma bala de hortelã no caminho.
            O metrô estava lotado e carregava o odor acre característico das multidões. Notei que todos me encaravam e, como ainda não havia me olhado no espelho, verifiquei a roupa e os sapatos, apalpei os cabelos e me cheirei discretamente. Não parecia haver nada de errado, mas por trás dos olhares julguei ver repulsa e medo, talvez até uma luz de curiosidade. Achei que poderia ser apenas mais uma das minhas neuras, ou que talvez minhas olheiras estivessem muito evidentes sem a maquiagem. Apertei a pasta e a bolsa contra o peito, por puro desconforto, até o fim da viagem. Cheguei ao trabalho com a intenção de ir direto ao banheiro para verificar minha imagem no espelho, mas logo que entrei fui impedida. Meus colegas reagiram de modo estranho ao me ver, olhei o relógio... não, não estava atrasada. Um deles trouxe meu chefe, que imediatamente perguntou o que havia acontecido e me aconselhou a tirar o dia de folga e procurar um médico assim que possível. Acredito que ele tenha percebido que eu não tinha ideia do que estava se passando, porque me pegou pelo braço, me levou até o banheiro mais próximo e, na porta, pediu para que eu me examinasse bem no espelho grande que haviam pendurado em uma das paredes. O que eu vi me deixou apavorada. Cada camada da minha pele havia se tornado transparente como vidro. O café da manhã revirou no meu estômago, não sei se de medo ou de nojo. Não lembro bem o que fiz a seguir, mas logo que recuperei parte do meu controle fechei bem o casaco para que esconder o máximo de pele possível e chamei um táxi.
            Quando cheguei ao hospital fui imediatamente atendida, o que me levou a crer que a possibilidade de enxergar o que havia em meu rosto por debaixo da pele transparente deveria de fato assustar. Fiz exames dos quais nem me recordo, passei por diversos médicos, das mais distintas especialidades, mas nenhum foi capaz de explicar o que estava acontecendo com meu corpo. Como não sabiam o que fazer e já que eu não apresentava qualquer outro sintoma ou mal-estar, exceto o pânico e aquela maldita sensação de leveza, me receitaram um calmante e me mandaram para casa. Senti que pareciam aliviados em me ver indo embora. Talvez devesse ter insistido para que me internassem, pois nenhum calmante poderia amenizar a sensação ruim que tive ao notar o olhar de medo do motorista do táxi durante o percurso.
            Agradeci a todos os deuses por ainda não haver ninguém em casa. Já havia passado da hora do almoço e eu ainda não comera nada, os problemas sempre me fecharam a garganta e o estômago, portanto, me satisfiz com algumas torradas meio murchas que deixei na mesa de manhã. Fui imediatamente para o banho e me sentei de baixo do chuveiro, com os olhos fechados, por um longo tempo. Quando senti que a água quente me relaxara um pouco saí, sem nem me dar o trabalho de me enxugar com a toalha, e fui direto para o espelho do quarto. Me olhei, nua e ainda pingando água morna. A pele estava fina, translúcida, principalmente nas regiões do rosto, peito e abdómen. Mas não apenas a pele, músculos e órgãos também estavam se tornando transparentes, de forma que era possível ver tudo o que se passava dentro de mim, como em um aquário.  Vi então as torradas que tinha acabado de comer e, antes que pudesse reparar em qualquer outra coisa, corri até o vaso sanitário para vomitar.
            Já era noite quando eles chegaram agitados. Eu havia me embrulhado em um sobretudo, apesar da temperatura agradável, e me escondera debaixo das cobertas. Não prestei atenção quando vieram me contar a respeito do passeio que fizeram depois da escola e nem me levantei para abraçá-los. Assim que as crianças saíram do quarto, no entanto, achei que era hora de contar o que se passara ao meu marido. Seguiu-se o mesmo comportamento que eu havia notado o dia inteiro, surpresa, medo, nojo e uma certa curiosidade. Como eu estava muito nervosa, apesar das pílulas de calmante com as quais me entupi, ele achou que eu deveria permanecer deitada, amanhã voltaríamos ao hospital.
            Os meses seguintes foram todos gastos na procura de uma cura para a minha doença, se é que poderia chama-la assim. Recorremos a todo tipo de ajuda profissional, desde os médicos mais laureados (com os quais gastei todas as minhas economias), até métodos alternativos com curandeiros e místicos. Quando meu marido sugeriu procurarmos um padre especialista em exorcismos e manifestações sobrenaturais, achei que era hora de parar. Ninguém sabia o que estava acontecendo comigo e, portanto, não existia uma cura. A situação, além disso, se agravava. Com o tempo, não apenas o que se passava organicamente em meu corpo era visível, como também cada uma das minhas emoções e pensamentos. Era possível a qualquer um lê-los como frases feitas dentro do meu corpo, com grandes letras púrpuras que se formavam, cada hora, dentro de um órgão específico. Se estava com raiva, palavras surgiam no meu fígado, descrevendo cada uma das minhas sensações. Se estava triste, frases se emaranhavam no meu pulmão, enquanto meu estômago tornava-se um livro mal redigido a cada uma das minhas crises de ansiedade. Mas era principalmente no rosto que meus sentimentos e ideias eram escritos, impedindo qualquer tentativa de me esconder. E foi isso, mais do que minha aparência bizarra, o que tornou impossível meu convívio com os outros. Nenhum sentimento podia ser dissimulado, eu era acompanhada e analisada por todos como um peixe preso dentro do aquário.
            Logo que a doença se manifestou abri mão do emprego, sabia que minha aparência e também a procura obsessiva por médicos impossibilitariam que eu continuasse no trabalho ao qual me dedicara por anos. Passamos a nos sustentar apenas com o salário do meu marido o que, junto com as despesas gastas nas inúmeras consultas, dificultou cada vez mais nossas vidas. Me tranquei em casa. Não ia mais na rua e nem sequer abria as cortinas, não sei se por medo dos vizinhos me verem ou porque sentia vontade de me enterrar cada vez mais fundo em terra úmida. O isolamento destruiu o pouco de esperança e de sanidade que ainda me restavam. Tínhamos brigas constantes, de início apenas relacionadas às nossas finanças, mas que, com a certeza cada dia maior de que meu estado era permanente e com a minha impossibilidade de esconder qualquer pensamento ou revolta, tornaram-se cada vez mais cruéis. Cada pequena crítica da minha parte em relação a ele ou às crianças era exposta em mim como tatuagem púrpura, assim como a raiva e a insegurança que tomaram conta de mim desde que ele deixara de me tocar. Sabia que ele tinha nojo de mim, que o desejo não sobrevivera àquilo. Eu não era mais uma mulher, eu era uma experiência, uma tela viva exposta pela casa, um texto a ser analisado por qualquer um que conseguisse ler sem vomitar.
            Um dia, ele e as crianças simplesmente não voltaram para casa. Chequei cada um dos armários, as roupas não estavam lá. Passei a viver totalmente sozinha. Não via ninguém, exceto a vizinha que, três vezes por dia me levava comida. Ela sequer conseguia me encarar. Por um acaso soube que meu marido a pagava pela caridade, assim como cuidava das contas de luz e água. Não sabia se me sentia grata ou se o odiava ainda mais por isso. Seria fácil descobrir, bastava ler o que sentia no meu corpo, mas eu já havia deixado de olhar para mim mesma há muito tempo.
Não foi difícil tomar aquela decisão. A autocomiseração e a depressão que me tomavam e alimentavam, bordando o meu corpo de palavras melancólicas, diziam o que deveria ser feito. Um dia simplesmente saí de casa, embrulhada no sobretudo habitual, de óculos escuro e chapéu. Comprei o máximo de cartelas de calmante que consegui, foi mais fácil do que eu imaginava, e voltei para casa. A luz do sol depois de tanto tempo escondida em uma casa que parecia cada dia mais escura me fizera mal, me senti confusa então guardei os comprimidos na gaveta para quando recuperasse a confiança. Mas não recuperei. Sentir o sol na minha pele transparente me havia lembrado o que era estar viva, então apenas esqueci o remédio na gaveta e esperei, dia após dia, um momento em que teria coragem de sair de novo e sentir o sol na minha pele. Conseguia em determinados dias, depois voltava a sentir medo e impotência, e me trancava novamente por meses.

            Três anos da minha vida se seguiram assim, entre pulsão de vida e pulsão de morte. Como não tinha com quem conversar, me habituei a escrever. Inicialmente achava que não teria o que contar, já que passava a maior parte dos dias trancada em casa, sem nada para observar exceto os móveis que iam se degradando com a falta de cuidados. Comecei escrevendo apenas uma palavra ou duas por dia, e não me surpreenderia se essas correspondessem exatamente às palavras púrpuras que surgiam debaixo da minha pele e que eu teimava em ignorar. Mas a medida que insistia, sentia que havia mais e mais para escrever, como se aquelas letras que apareciam no meu corpo fossem vomitadas para o papel. Logo preenchia páginas inteiras e me vi obrigada a pedir para a vizinha que me comprasse alguns cadernos. O tempo que antes gastava vagando pela casa ou entre os lençóis sujos agora era cada vez mais dedicado à escrita e essa parecia me trazer de volta à mim mesma. Em certo momento notei que minha pele voltava a adquirir cor e se tornava opaca, mas estava tão envolvida com o êxtase que despejar todas aquelas palavras no papel me proporcionara que, a princípio, nem me dei conta do que aquilo significava. Quanto mais escrevia, mais minha aparência voltava ao normal, até que finalmente voltei a me encarar no espelho e percebi que, fora os sinais de desleixo, cansaço e algumas novas rugas, eu voltara a ser exatamente como era antes da inexplicável doença. No espelho enxergava apenas pele macia e meio amarelada. Nenhum órgão aparente, nenhuma palavra surgindo pelo corpo. Estava curada e não sabia por onde retomar. Escrevi muito naquele dia, achei que poderia preencher mil cadernos, e na manhã seguinte finalmente sai de casa sem o sobretudo e chapéu. Anos se passaram desde minha cura e a escrita me acompanhou por todo esse tempo, como um remédio de uso diário, sem o qual voltaria a adoecer. Me rendi ao único tratamento que tornou minha vida possível, pelo qual meu corpo permanecia opaco e adquiria peso. A sensação de ser exposta por dentro aos olhos do mundo, no entanto, nunca mais me abandonaria.  

20 de outubro de 2014

O cílio encravado que me faz enxergar o mundo apenas por um olho

O suor brota de cada um dos meus poros,
Como poesia.
Escorre como tinta aquarela na tela branca.
Como se quisesse formar um texto,
Como se quisesse bordar uma imagem.

Meus pés são pequenos demais para me manterem ereta,
Meus joelhos finos demais para me tornarem submissa,
Portanto, meu corpo permanece deitado na sombra dos dias,
E conheço o mundo apenas em espírito.
Não sei se sou um espírito do ar ou raiz afogada na terra.

Luto com o desejo de comer da minha própria carne,
De me absorver ritualisticamente, auto-antropofagicamente,
Para que meu corpo finalmente faça peso em mim,
Para que o olho que me olha por dentro,
Perceba que ainda estou em aqui. 

3 de setembro de 2014

Um pecado capital

Eu te invejo,
Boneco cheio de carne,
Cheio de pedras,
Cheio de hormônios.

Eu te invejo,
Quando olho
Através do olho-mágico
Que é meu umbigo
E vejo o nada
E vejo o oco,
Onde o vento dança
Sem obstáculos,
Onde o sangue passa,
Ralo que nem água.

Eu te invejo,
Boneco cheio de veias
Cheio de pelos,
Quando olho
o fundo da minha garganta
E vejo o escuro
E vejo abismo,
Vejo um poço vazio,
Um corpo sem veias.

Eu te invejo,
Boneco de gelo e pedra
Porque seu corpo é só matéria
E o meu, 
Fumaça e medo.  

28 de abril de 2014

Ideias soltas, escorridas pelo chão.

Tudo que era preciso já foi dito de alguma forma. Agora só me restam palavras velhas, ideias requentadas, letras garimpadas nos antiquários em meio a poeira e mofo. Ainda assim, abro o baú dourado das palavras com a curiosidade de uma criança que diz tudo pela primeira vez. Com o espanto de Pandora ao abrir a caixa misteriosa e descobrir que as letras que eu bordo no caderno, quando unidas, não se obrigam a fazer sentido, não se importam se venho do lixo, se sou escória e vomito insetos no lugar de rimas ricas. Ao contrário, dispersas ou coladas, elas me acompanham aos hospícios, choram no meu travesseiro e pedem colo, pedem leite. As palavras que me sugam, me drenam a alma, a vida e o sangue, mas não me cobram uma lógica vã, não se enquadram em teorias, papel milimetrado e coreografias. Preferem movimentos loucos. Dançam livres, escapam das folhas e escorrem pelo chão. Gostam de tumulto, sujeira... Desejam a confusão. 

20 de março de 2014

Na garganta do Tempo

Ininterruptamente luto com essa besta chamada Tempo.
Sem trégua,
Sua boca escancarada,
sedenta do meu sangue.
Nela enxergo passado, futuro e presente,
velhos cadáveres,
antigos e derrotados combatentes.
Vejo amores fracassados, teias bem bordadas,
entulhos, promessas para o dia seguinte.
Vejo máscaras de cera, belezas sugadas pela batalha,
assombrações saudosas de seus dias de glória.

Monstruosos ponteiros compõem a sua língua,
Tic-tac, tic-tac, faz sua risada maníaca.
Nas costas das minhas mãos, Ele traça as suas linhas,
nos rostos amados Ele assina.

O único deus é a boca do Tempo,
apenas dentes que trituram o osso,
bocarra que devora a tenra carne,
garganta que para a terra vomita a pele.

“Tic-tac, tic-tac, tic-tac...”
Ele ri da minha pequena existência
e me cospe, na face, as areias do tempo. 

12 de março de 2014

O poeta louco quer brincar

O poeta louco puxa meu pé à noite:
“Vamos brincar?”
Pego canetas e agulhas
e ele escreve no meu corpo
qualquer palavra boba sobre “amar”.

Vez ou outra,
o poeta louco puxa o meu lençol:
“hoje tenho apenas raiva e ganas de te machucar!”
Pega a caneta e algumas folhas
e escreve sobre elas
como se meu corpo não estivesse lá.