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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

19 de novembro de 2015

O novo ano tem cheiro de naftalina

É fim de ano. Os gatos andam assustados, com o rabo entre as pernas. Sorrateiros, se encolhem e esfregam a barriga no chão tentando se esconder embaixo da terra. Se enfiam em buracos e frestas, nos mínimos vãos. Sentem medo, farejam no ar a farsa do antigo vestido em uma nova roupagem que cheira a pólvora e espumante barato. São nove da noite, chequei meu e-mail: inúmeras mensagens entupindo minha caixa de entrada com votos genéricos de felicidade. Apaguei-os um a um. Poderia ter selecionado todos de uma só vez e enviado para a lixeira, mas senti prazer em deletar e-mail por e-mail com tranquilidade, como demoradas alfinetadas em cada um de meus remetentes. A festa já havia começado fazia tempo e eu estava atrasada, pensando nos gatos, pensando na pólvora, pensando na farsa.
Cinco para as dez, estou pronta para ir. Estou bonita, em um vestido branco colado, o tecido de renda destaca bem os meus seios e os meus quadris. Branco sempre me vestiu bem, mas hoje me sinto ridícula, uniformizada em meio a uma multidão de pessoas que se assemelham a ovelhas, tanto na cor quanto na passividade. Fico com raiva e enfio uns sapatos vermelhos.
Dez e vinte. Logo que chego, tio Carlos diz que eu me pareço uma princesa, me aperta as bochechas e dá uma piscadela enquanto sussurra “Carol, minha bonequinha”. Não sabia que ele estaria lá, entendo a referência e me assusto, volto a ter seis anos.
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Vovó sempre dizia que tio Carlos era um brincalhão, que aporrinhava as meninas, mas era só de graça. Mas desde que eu era criança nunca havia achado graça no tio Carlos. Titio gostava de pegar as sobrinhas no colo, mas não era colo gostoso de pai, chamava a gente de “namoradinha” e vez ou outra me virava e mordia minhas coxas. Titio também pedia para ver as nossas calcinhas, dizia que tinha curiosidade, porque nunca tinha visto calcinhas tão bonitas assim, rosinhas e de lacinhos. A gente obedecia e mostrava, porque titio era adulto, mandava, e nós éramos suas “bonequinhas”. Mas sempre que encontrava com ele sentia minha garganta contraindo e passava o resto da semana com as amídalas inflamadas e doloridas. 
Desde que me lembro minha garganta sempre foi o ponto mais frágil do meu corpo. Certa vez tive uma crise de amigdalite que me impediu de comer qualquer coisa sólida. Era janeiro, época do ano em que costumava ir para a casa de praia com meus pais e minhas primas. Daquela vez tio Carlos também tinha sido convidado para nos acompanhar na viagem. Embora eu tenha passado uma semana me divertindo com banhos de mar, brincadeiras na areia e passeios na praça, o que a lembrança dessas férias me traz, ainda hoje, é um peso nos ombros e no estômago que parece me fazer diminuir vários centímetros. Foi também nesse período que, apesar de já estar prestes a completar oito anos, minha prima Bete voltou a fazer xixi na cama, embaraço que a acompanhou todas as manhãs, na hora de despertar, não só durante nossas férias mas até os seus dez anos. 
Em uma de nossas tardes na praia, tio Carlos levou Bete para dar um passeio, iam comprar sorvete, ele disse. Naquela manhã eu havia acordado com a garganta quase fechada pelo inchaço das amídalas, fui obrigada a permanecer na cama e expressamente proibida de tomar qualquer coisa gelada. Quando Bete voltou, ela teimava em não me contar de que sabor tinha sido o sorvete e porque não trouxera um escondido para mim. Fiquei com raiva e puxei os cabelos dela, Bete chorou e eu passei o resto do dia de castigo, lamentando a garganta inflamada e o sorvete de morango que tinha certeza que Bete tomara inteirinho, sozinha. 
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Dez para meia-noite. Evitei nosso tio a festa inteira. Bete não viria, disseram que tinha planos com o marido e uns colegas do trabalho. Não esperava mesmo encontrá-la, há anos ela se distanciara da família. Olhei ao redor, tio Carlos estava sentado no canto da sala, sozinho, encolhido como se tentasse se fundir na parede. Tinha envelhecido muito, com seus ombros caídos, tão encurvado que parecia querer sumir dentro de si mesmo. Nossos olhares se cruzaram e o que vi foi o vazio por detrás daqueles olhos vermelhos. Tremi.
Meia-noite. Primo Marcus estourou o champanhe. Nos abraçamos em uma confusão de branco, espuma e felicitações. Meu sapato vermelho dançava naquela massa e me lembrava que eu tinha cor. Marcus me abraçou apertado e me beijou na ponta do nariz. Ninguém abraçou tio Carlos, exceto vovó. Ele permanecera sentado na poltrona no canto da sala. Mas ela, com seu passinho arrastado, levou para ele uma taça de champanhe e um pratinho com torradas e doces, abraçou o filho com tanto carinho que parecia preencher o oco que era o corpo dele. Senti meus músculos se contraírem e o bolo que se formou na minha garganta bloqueou a bebida. Cuspi de volta na taça.
Meia-noite e vinte. Entrei no carro e dirigi rumo a minha casa. Não conseguiria permanecer naquela festa. Não queria pensar mais em tio Carlos, em calcinhas de lacinho, naqueles olhos caídos e vazios, em Bete e seu distanciamento, na família omissa e em vovó que afirmava que o filho “era um bom menino, só que muito brincalhão, gostava de aporrinhar as mocinhas”, mas tinha na voz um tom triste de dar dó.

Vinte para uma. Já no sofá, espanto com as mãos as histórias do passado que aquela festa desenterrara. Apago titio, apago vovó. Olho para os meus sapatos vermelhos, é um novo ano. Penso em pólvora, penso em espumante barato, em branco tedioso, penso em gatos se esgueirando, sorrateiros pelos telhados, escondendo-se em buracos... pressentindo, com medo, que o novo é só o velho, fantasiado de tule e seda, cheirando à naftalina.

3 de setembro de 2015

Palavras

Papéis espalhados na estante sangram tinta, feridos por palavras que, juro, não gostam de mim. Relembro velhos tempos em que elas pareciam sólidas, em que se pareciam menos comigo: menos fumaça, mais fogo.
Matricidas, elas devoram minhas entranhas, sugam meus fluidos, e se parecem mais comigo: menos carne, mais osso.
Juro que as odeio, que as enforco no papel, que as vomito no vaso, que cuspo pragas e acendo velas para que se percam. Mas elas voltam, sempre voltam, com cheiro de palavras novas e, no entanto, ainda sempre as mesmas, dissimuladas matricidas que envenenam a saliva na minha boca seca. 

29 de julho de 2015

Urbana

Minhas botas batem nas pedras em mosaico da calçada. Compõem música, a cada passo ritmado, que ecoa pelas ruas vazias da cidade. Sou uma escultura de ossos quebradiços, papel e metal enferrujado. Meu cabelo, pele e neblina se confundem em meio a madrugada, escorrem do passeio ao asfalto em cascatas de água salgada.
Não pedi que você me acompanhasse ao inferno. No entanto..., no entanto..., sua sombra cobre meu corpo enquanto caminho pelos becos da cidade. Me pesa os ombros, peito, pés e pescoço, verga meu corpo em direção à poeira da calçada. Com as mãos em concha eu bebo a água empoçada, quente, grossa, suja. Se na chuva ela me cura, colhida da poça me envenena garganta, fígado, alma.

Vejo partículas da minha pele, fios de cabelo, perdendo-se em meio as rachaduras do passeio e, embora a roupa me cubra, quase, quase não me resta pele. A boca do tempo me alcança na madrugada, me mastiga, rumina, vomita. E se na luz do dia me ilumino, eu me desfaço, desintegro, na noite da cidade.  

6 de julho de 2015

Respiração

Puxo o ar pelo nariz, conscientemente encho os pulmões, solto pela boca. Tento de novo, mas não consigo manter o ritmo, solto o ar antes que o pulmão esteja cheio, puxo antes que esteja todo vazio. Confundo os movimentos respiratórios, qual era o certo mesmo, encher o peito ou o abdômen? Começo a sugar o ar pela boca como se estivesse bocejando, mas não é sono, é só urgência em suprir a falta de ar que o exercício, executado errado, me proporciona. Começo a ficar tonta e me esqueço de como respirar naturalmente. A ansiedade me faz esquecer também como piscar os olhos e como engolir saliva automaticamente. Passo a controlar os movimentos: fecho os olhos, abro, puxo o ar, solto, engulo o cuspe.
Ajeito o telefone no gancho, apago a luz da sala, ainda tonta pela forma desregular que o ar entra nos meus pulmões, e volto para o quarto. Paro na porta, fecho os olhos, abro. Puxo o ar, solto. Engulo saliva.
Ele desvia o olhar do livro e me encara meio debochado, meio irritado:
- Por que você tem mania disso?
- Isso o que?
- Vez ou outra começar essa respiração descoordenada.
- São exercícios respiratórios, ué. Dizem que relaxa.  
Era mentira, mas de que outro modo poderia explicar que havia me esquecido como se respirava? Isso para não falar na saliva que se acumulava na minha boca e que eu tentava disfarçar, preparada para engolir discretamente assim que ele voltasse para a leitura.
Ele dá uma risada que parece mais um sopro de impaciência, como se empurrasse todo ar com a garganta enquanto mostrava os dentes amarelados de café e cigarros.
- Não me parece muito relaxante. Na verdade, você me parece até meio roxa. Quem era no telefone?
Fecho os olhos, com força, abro. Esqueço de puxar e soltar o ar antes de engolir a saliva e engasgo.
- Você sabe...
- Mas hoje nem é seu aniversário... aconteceu algo?
- Convite para o almoço de dia dos Pais... Casa dele.
- Entendo... e nós vamos?
Esqueço novamente como se respira. Sugo o ar pela boca, como se bocejasse, mas na verdade só anseio por encher meus pulmões de ar. Esqueço como se pisca e como se engole a saliva mecanicamente. Fecho os olhos, abro. Puxo o ar com o nariz, com todo o corpo, mas solto antes mesmo de sentir o peito cheio. Parece que me afogo. Engulo cuspe. Engulo de novo.
- Posso entregar o cartão de felicitações em branco?






11 de junho de 2015

Singularidades

            Pedro aguardava no hall do hotel, em uma poltrona de couro que se ajustava ao peso do seu corpo. Do lado um piano de cauda fechado, mudo, um cadáver no saguão. No teto, um lustre de cristal que dançava com a brisa que passava pela porta de entrada a cada vez que essa se abria. Mais uma vez a grande porta de vidro se movimentou e o lustre sacudiu: plim, plim, plim. Da rua entrou uma bela mulher em um vestido preto e bem cortado. Nos pés usava sandálias de tiras de couro. Ela ajeitou os cabelos desordenados pelo vento de agosto e se dirigiu ao balcão da recepção.
            Enquanto isso, Pedro preparou a câmera do celular discretamente e assim que ela deixou o balcão, ele começou a filmar, acompanhando o andar seguro e elegante da mulher até que ela sumisse atrás da porta do elevador. Ele pausou a filmagem e sorriu satisfeito: “mais uma”. Logo em seguida, um senhor de barba branca saiu do bar do hotel. Ele demonstrava dificuldades para andar com seus sapatos de couro duro. Pedro preparou a sua câmera mais uma vez e com ela seguiu os passos arrastados do velho.
            Ainda criança, Pedro adquirira a mania de colecionar tudo o que lhe despertasse a sensibilidade. Seu pai o havia iniciado nas tradicionais coleções de selos, moedas, carrinhos e até mesmo tampinhas de garrafa, mas logo nos primeiros meses de incursão no mundo das coleções o então menino demonstrou grande criatividade e capacidade de inovação. Percebeu pouco a pouco quantas características exclusivas e fascinantes cada pessoa possuía e, vistas através de seus olhos de colecionador, tais traços gritavam a necessidade de serem registrados, catalogados e devidamente preservados.
            Notou, pela primeira vez, seu interesse pelas individualidades dos outros quando sua família se mudou para um sítio no interior. Logo que chegaram foram recepcionados pelo vizinho e sua família. O cheiro que desprendia daquele homem despertou sua atenção. Da pele, que começava a enrugar, exalava uma fragrância mista de terra molhada, suor, queimado de sol e sabão. Percebeu que era diferente de tudo o que sentira nas outras pessoas, na cidade os odores se misturavam com fumaça e poluição, tornando-se indistinguíveis, mas ali, naquele ar fresco do campo, o menino podia perceber cada novo odor. A esposa e filhos do vizinho também cheiravam cada um a seu modo, cada um uma mistura inovadora de odores cotidianos. Aproximou-se de sua mãe, abraçou-a pela cintura, afundou o rosto na barriga dela e puxou o ar com força pelo nariz. Descobriu então, que o cheiro dela também era único, doce, suave, leitoso.   
           A partir daquele dia passou a farejar o cheiro de cada um que encontrava. E como não descobrira um modo de preservar cada novo odor que descobria, procurava registrá-los na memória. À noite, antes de dormir, repassava mentalmente cada um dos cheiros que tinha descoberto durante o dia. Procurava reviver a sensação que cada um havia lhe despertado, se tinha feito cócegas nas suas narinas, se lhe abrira os pulmões mediante um perfume agradável, se lhe causara arrepios e contrações de nojo. Mas logo, apenas a memória não bastava mais, decidiu, então, colecionar as peculiaridades de cada pessoa que conhecesse.
            De início foram as letras. Únicas e tão reveladoras, traços de tinta que diziam mais do que apenas aquilo que fora gravado no papel. Pedro guardava cada carta que chegava em sua casa, fosse ou não destinada a ele. Guardava-as não pelo conteúdo, é claro, mas pelas letras que exibiam. Logo passou a revirar o lixo da vizinhança a procura de um pedaço de papel, mínimo que fosse, que contivesse uma anotação à mão. Preencheu duas gavetas de arquivo com amostras das mais diversas letras, mas com o tempo, aquilo também não satisfazia mais, parecia-lhe ainda muito impessoal. Suas coleções precisavam se aproximar o máximo possível das pessoas. Um dia ouviu a risada escandalosa de sua tia vindo da cozinha e percebeu que nada poderia ser tão pessoal quanto aquilo. Com o velho gravadorzinho que havia sido do pai iniciou sua coleção de gargalhadas.
         Primeiro se limitou a membros da família. Em todas as comemorações lá estava ele com o gravador a postos. Mas como todo colecionador, ambicionava sempre mais. Logo passou a dar demorados passeios pelas ruas e praça da cidadezinha, os dedos atentos no botão de Rec ao menor sinal de riso dos transeuntes. Das risadas emendou uma coleção de vozes. Vozes bonitas, vozes engraçadas, vozes graves, agudas... ele gravava de tudo e depois era capaz de passar o dia escutando-as e organizando-as nas mais distintas classificações que podia criar.
            Quando completou vinte anos, Pedro decidiu se mudar. O sítio da família e as poucas ruas da cidadezinha eram pequenas demais para suas ambições de colecionador. Como desculpa, tinha as possibilidades de estudo que só a cidade grande podia proporcionar, justificativa que convenceu a mãe, preocupada diante da decisão do filho de abandonar o lar. Com a ajuda dos pais alugou um apartamento de dois quartos, um desses destinado a acomodar as coleções que, obviamente, seguiram Pedro na mudança.
            Alguns meses após se mudar, entrou na faculdade de comunicação, mais para satisfazer os pais do que por desejo, no entanto longo percebeu que curso lhe seria mais útil do que supunha. Aprendeu sobre fotografia e sobre como manejar uma filmadora, técnicas que passou a aplicar em suas caças por detalhes colecionáveis. Durante a tarde trabalhava em uma loja de eletrônicos e, graças ao dinheiro que conseguiu juntar, comprou uma máquina fotográfica profissional com a qual caçava sorrisos, andares e gestos pela rua.
             Nas aulas da faculdade sentava-se no fim da sala, local ideal para observar cada pessoa da classe. Desde o início do semestre ficara encantado com a visão dos cabelos de seus colegas. Mais do que isso, de fato encantara-se com a forma como cada um movimentava os fios com as mãos: alguns coçavam, outros alisavam, outros enrolavam mecha, por mecha com os dedos. Discretamente filmava o espetáculo que dançava na sua frente, sem nem mesmo perceber o professor que se desfazia em explicações e teorias diante do quadro. Mas quem mais lhe chamava atenção era Carla, a garota que se sentava na carteira em frente a sua. Na verdade, não era propriamente Carla que despertava fascínio, nem seu longo cabelo visto de trás, tampouco a forma como vez ou outra ela penteava os fios com os dedos. O que prendia o olhar de Pedro era a mecha que insistia em permanecer solta sempre que a menina amarrava os cabelos em um coque. Ele se apaixonou por aquele único cachinho na nuca que se rebelava contra o penteado malfeito. Aproveitava a posição estratégica para tirar tantas fotos quanto possíveis daqueles fiozinhos ralos. A memória de seu celular sobrecarregou-se de imagens daquela mecha, mas ainda assim ele não se sentia satisfeito. Adotou táticas para tirar fotos com sua câmera profissional sem que Carla percebesse, seguia-a pela universidade, pelas ruas, mas as fotografias em melhor qualidade também não eram suficientes. Revelou várias das fotos, e dedicou a elas um painel especial em sua coleção, mas longe de atenuar sua paixão, Pedro sentia-se cada dia mais obcecado.
            Aconteceu no dia que Carla usou um novo shampoo, cujo odor de frutas vermelhas exalava. Pedro notou a mudança logo que a garota se sentou na sua frente, o cabelo preso em um coque e a mecha teimosa solta na nuca. Soube então que não resistiria mais, precisava cheirar aqueles fios, tocá-los, sentir a textura na ponta de seus dedos. Pegou uma tesoura de dentro do seu estojo e com a respiração irregular, sintoma claro de sua ansiedade e excitação, cortou aquele cacho que pendia na nuca da garota. Carla não teve tempo sequer de reagir, quando olhou para trás assustada, ele já se levantara e saia correndo da sala, com os fios de cabelo presos na mão. Não voltou mais. Envergonhado, abandonou a faculdade, cortou contato com os poucos amigos que tinha feito e passou a se dedicar exclusivamente às suas coleções e ao emprego na loja.
            Aquela mecha de cabelo ganhou lugar de destaque no quarto onde ele organizava suas preciosidades. Mas fora da nuca da garota a qual pertencia, ela perdia seu encanto. Pedro passava longas horas olhando-a, e se dava conta de que longe da moldura branca formada pela pele de Carla, longe dos movimentos daquele pescoço, do perfume que se espalhava do couro cabelo aos fios, aquelas mechas isoladas perdiam o encanto, estavam mortas.
 Tomado pela frustração, Pedro percebeu que sua coleção toda parecia morta, um mausoléu de pedacinhos de gente que, em grande parte, jamais voltaria a ver. Deu-se conta, também, de que ela estaria sempre incompleta, por mais que saísse em busca dos detalhezinhos maravilhosos de cada pessoa nova que encontrasse, milhões de outros passariam despercebidos, enquanto outros tantos, ainda, se esconderiam por aí, distantes de seus olhos, eternamente desconhecidos. Correu a vista pelo quartinho atulhado por sua empresa impossível, aquele cemitério de caixas e arquivos sem sentido e, angustiado, sentiu que sua maior falha era não enxergar a si mesmo naquele amontado de papéis, fotos e filmes. Encarou seu reflexo no vidro da janela e sentiu que quase não existia, soube, então, que precisava ser registrado, que precisava dar a sua vida à sua coleção morta.
Determinado, cortou várias mechas de seu cabelo e colocou-as junto com as fotos e filmagens dos mais belos fios que havia encontrado, bem como as mechinhas que conseguira pegar discretamente dos salões e barbearias. Não as misturou com o cachinho de Carla, por mais sem vida que estivesse, seu lugar ainda era no pedestal. Aparou as unhas e guardou aquelas pontinhas brancas, levemente amareladas, na caixinha destinada a recortes de revistas com mãos de modelos sem rosto, mas com unhas perfeitamente esmaltadas, e vídeos de manicures tratando as unhas de suas clientes, feitos furtivamente em suas espionagens. Olhou para a sua pele, notou o tom dourado e percebeu que era digno de ser preservado, tirou fotos do antebraço, onde a cor se fazia mais bela, tomando precauções para que a luz alterasse o mínimo possível sua tonalidade na fotografia. Gravou sua risada, seu choro, seu andar e a cada um destinou o local correto em seus arquivos. Dias se passaram nesse processo, até que ele pudesse olhar seu trabalho e, orgulhosamente, dá-lo por encerrado. Sabia que jamais poderia colecionar todos os traços e gestos das pessoas por quem passava, mas sabia agora que não era disso que sua tarefa se tratava: Pedro jurava, com os pés bem juntinhos, que quem soubesse olhar atentamente sua coleção, nela seria capaz de ler toda a sua vida. 

13 de maio de 2015

Segredos marítimos

Estávamos em um barco à mercê das ondas. Era a primeira vez que me encontrava em alto-mar e a sensação resumia-se à total embriaguez, fosse pelo encanto que a vista me proporcionava, fosse pelo enjoo causado pelo balançar do barco. Enquanto adentrávamos cada vez mais longe no mar e a faixa de areia desaparecia para dar lugar a uma imensidão de água salgada que nos cercava por todos os lados, eu, com a curiosidade felina de quem se depara com algo pela primeira vez, observava hipnotizada como as cores da água mudavam de um verde transparente para o mais profundo azul. O vento soprava forte, mas amoroso, aliviando o calor do sol que ardia a minha pele e, tal qual um guia que busca proporcionar a apreciação total da paisagem, retirando os fios de cabelo que sempre insistiam em cair nos meus olhos.
Eu estava feliz. Dona de uma paz que naquele instante enganava ser inabalável. Apenas eu e o mar, em plena harmonia, troca e fluidez. Em mim, eu parecia ser capaz de sentir os movimentos da Terra. Eu me movia no ritmo do mar e do vento, oscilávamos ao som do mesmo balanço. Eu e o todo, nesse momento que jurei eterno, éramos um só. Eu respirava o mundo, sua integração perfeita, seu perfume de todas as flores e frutos. Eu era apenas e acima de tudo uma célula mínima e pulsante daquele corpo de eras. Pela primeira vez sentia-me completa, em mais puro êxtase, porque de algum modo, parte de mim se conectara a tudo, do mar ao céu, dos corais que aquelas águas escuras escondiam às rochas que se apresentavam diante dos meus olhos. A parte de mim que era vazia preencheu-se de vida nova e pura, julguei-me herdeira e partícula do mundo. Eu era dona do mar e das rochas eternas e, ao mesmo tempo, eu era o próprio mar e as próprias rochas.
Ainda hoje não sei porque tudo mudou, mas de repente, o que era paz e perfeita comunhão rompeu-se. Olhando as águas profundas percebi o quanto aquele azul escuro era ameaçador. Tive medo. O mar me pareceu sufocante, porque agora ele aparecia perante mim como um véu denso e sombrio que ocultava um número incalculável de mistérios e perigos. Logo abaixo de mim existiam milhares de vidas e segredos que eu não podia enxergar ou sequer imaginar. Inúmeras criaturas em constante luta pela preservação, pelo afirmar da própria existência, ocultando-se na falsa aparência de harmonia da superfície do mar. O movimento constante das ondas nada mais era que um disfarce para toda a vida e morte que borbulhavam em suas profundezas, vida e morte que a qualquer momento poderiam romper o véu de ondas que as separavam e ocultavam de mim.
E então já não estava mais inebriada pela beleza marítima, mas sim por todo o seu potencial ameaçador, por tudo de novo e desconhecido que daquele véu poderia surgir. Não mais me maravilhava com seus segredos milenares. Aterrorizava-me com seus enigmas, com a impossibilidade de conhecer qualquer coisa além do véu das águas, além do véu do futuro e além do véu do meu próprio ser. Hipnotizada pelo mais denso azul que já vira, eu senti um pânico que jamais havia conhecido. A visão do mar me sufocava, mas eu era incapaz de desviar os olhos mesmo que pelo mais breve instante. A tomada de consciência de que aquilo que segundos atrás eu admirará e acreditará parte de mim, na verdade era apenas uma superfície que escondia dos mais belos aos mais tenebrosos enigmas, fez com que eu pensasse em tudo aquilo que não me fora dado saber. De repente, eu me dava conta de que dentro de mim existia um mar que, como aquele com o qual meus olhos se deparavam, escondia todo um cardume de segredos. Aquilo que eu mostrava aos outros era apenas a superfície ondulante de mim mesma, somente as águas rasas perto de todo o resto que eu era e nem ao menos compreendia.
 Ignoro se o que me causou pânico foi o fato de não conhecer as coisas que mais fundo se escondiam em mim, ou se foi a possibilidade de descobrir dentro de mim qualquer coisa de terrível e indesejado. Só sei que eu tremi e não quis ser mais do que apenas superfície, não queria adentrar em meu ser nem sequer um centímetro de profundidade. Mas era tarde demais, descoberta a luz já não poderia viver sem ela. Não poderia esquecer, eu era camadas e camadas de água. Água densa e escura, que escondia dentro de si brilho e sombra, pureza e sujeira, o belo e grotesco. Em um ato impulsivo, coloquei-me de pé e de olhos abertos mergulhei no mar.
 No silêncio que se encontra apenas debaixo d’água procurei enxergar o máximo que minha limitada visão humana permitia, mergulhando cada vez mais e mais fundo, surpreendendo os segredos que as águas ocultavam. Muitos passavam diante de meus olhos turvos sem que eu os notasse, outros se escondiam em profundidades inalcançáveis, porém alguns, ainda que mínimos, eu fui capaz de encarar.   


6 de abril de 2015

Passatempo


No início de tudo, quando terra, céu e mar ainda se confundiam em meio ao caos inicial, três deusas foram criadas a partir das rochas cinzentas. A elas foi destinada a tarefa de cuidar daquilo que viria a se chamar “tempo” e para que não houvessem disputas, dividiram-no em três partes iguais: passado, presente e futuro.
  Como foram talhadas em pedra, essas lindas deusas nasceram frias, ásperas e cruéis, de forma que passavam os dias brincando com o tempo da Terra sem nenhuma piedade. Divertiam-se sobretudo dançando com as linhas que amarravam cada uma das três partes do tempo aos seus tornozelos. Quando faziam isso, passado, presente e futuro se misturavam, formando nós, desenhos e bordados, mostrando que no fundo, podiam ser uma coisa só.
No entanto, a cada vez que moviam a roda do tempo por meio das linhas em seus pequenos e ásperos tornozelos, notavam que rachaduras surgiam em seus rostos. No começo eram finas, quase imperceptíveis, mas aos poucos tornavam-se mais grosseiras, como erosões em suas belas faces de pedra. Vaidosas, a função sagrada de fazer correr as eras, passou a amedronta-las. Ao se perceberem envelhecidas e com os corpos cobertos de marcas, as três deusas quase desistiram de seu lugar divino, preferindo talvez fundir-se novamente às rochas que as pariram.
Foi quando descobriram na Terra a existência de criaturas de aparência semelhante à dos deuses, mas que em sabedoria e comportamento igualavam-se aos animais. Perceberam, naquele momento, que podiam manter seus belos rostos intactos, desde que ao correr de cada dia sugassem um pouco da vida daqueles animais tão semelhantes e, ainda assim, tão distintos delas. Desde então, as três deusas do tempo ganharam juventude eterna, enquanto os míseros homens passaram a definhar dia após dia, até a morte.  

3 de abril de 2015

Improviso

Acordo, num repente.
Um mergulho na luz cega.
Minha saliva cheira a damasco
Damascos doces, damascos amargos.
Amoras doces, amores amargos.

Cuspo sabores e odores
No prato vazio,
Na pele cinza
Do seu corpo vazio,
Raso, mal passado.

Saio ao ponto,
Bem em ponto.
Tranco a porta.
Cheiro a amoras passadas.
Amores passados.  


14 de março de 2015

Um tango argentino


            Na casinha amarela de esquina, quase invisível por trás do muro encardido, o velho toca-discos zumbia suavemente noite após noite, quase sem interrupção. Na sala de estar, Marcos Albuquerque observava Louis Armstrong girar no velho aparelho enquanto deixava-se desenhar pela agulha. Sentiu que aquela era noite de vinho, por isso abriu a garrafa de marca barata que havia encontrado no mercado do bairro. Pouco a pouco percebia aumentar a intensidade da pulsação de seu sangue nas veias, aquecido pelo álcool e pelo som do trompete. “Em momento como esse a vida é quase boa” pensou, percebendo que para ele seria possível morrer em paz ouvindo What a wonderful world. Respirou fundo, pegou o velho caderno de notas, abriu na página mais recente e adicionou o nome da música na coluna desenhada à direita e intitulada “mortes pacíficas”.
            Desde criança a relação de Marcos com a música era muito próxima. Nunca havia tomado aulas no conservatório da cidade e nem se dedicara a aprender nenhum instrumento, não tinha paciência para ordens e metodologias de professores ultrapassados. Em compensação, entendia a linguagem musical como ninguém e muitas vezes sentia que só podia se comunicar por essa. Tímido, retraído, trocava o convívio humano pelo contato com a música. Da nona sinfonia de Beethoven ao mais novo hit da cultura pop, era como se cada música expressasse perfeitamente seus sentimentos. 
            Na juventude teve oportunidade de cursar a faculdade de música, mas preferiu formar-se em Letras, afinal, aqueles acadêmicos da música realmente não sabiam o que diziam. Estudou, portanto, literatura e por um período acalentou a ideia de tornar-se escritor. Marcos até tentou, mas por mais que se esforçasse era incapaz de se expressar satisfatoriamente pelas palavras, as amava pelo seu som, mas perdia-as em seu significado. Arriscou-se na poesia, mas seus poemas concentrados apenas na sonoridade e sem se aterem ao sentido só conquistaram os críticos por um curto tempo. Além disso, a medida que ia amadurecendo, apenas o som das palavras não lhe satisfazia mais, era preciso algo além, e assim ele sempre retornava aos diálogos com a música.
            Até os cinquenta anos, a música para Marcos estava diretamente associada à ideia de vida. E assim parecia que continuaria se não fosse o acidente. Era um fim de tarde e ele voltava da padaria, enquanto atravessava a rua ouviu um som distante que lhe pareceu ser a Marcha fúnebre, de Chopin. Os poucos segundos em que parou para ouvir a beleza e o choro melancólico daquelas notas foram o suficiente para que um carro o atingisse. Embora os pães e geleias recém comprados tivessem sido fatalmente atingidos, Marcos sobreviveu. Depois de alguns dias de recuperação no hospital, recebeu alta e foi aconselhado a retomar sua vida normalmente, mas que tivesse mais cuidado ao atravessar uma rua. No entanto, ele interpretara o episódio como um sinal, sabia que a morte estava próxima, rondando como um cão faminto, esperando um simples momento de distração ou fraqueza. A ideia de partir sem deixar nenhum registro de sua estadia no mundo lhe tirou o sono nos dias que se seguiram. Era preciso mostrar que existiu, deixar um sinal, ainda que insignificante, de que algum dia também fez peso na terra repisada por gerações e gerações.  Foi quando percebeu o quanto parecia assustador o silêncio da morte, nenhuma música que pudesse traduzir seu interior, nenhum som com o qual conversar pelas horas longas e escuras. Decidiu então que, a partir daquele momento, se dedicaria a criar uma lista com as músicas que deveriam tocar no seu velório. Mas não uma lista qualquer, afinal, em sua cabeça, as músicas selecionadas soariam em sua alma pelo resto da eternidade. Cada faixa da lista deveria ser perfeita e condizer com a forma como ele morreria, aquela seleção deveria ser sua obra-prima. A partir daquele momento, a relação dele com a música se modificaria completamente, ela ainda seria vital, mas assumiria, contraditoriamente, um aspecto fúnebre que pouco a pouco deixaria de alimentar Marcos para consumi-lo.
 Logo que teve a sua grande ideia, separou um velho caderno de capa preta, antes usado para suas poesias, para anotar a lista. Arrancou as páginas já usadas, as embolou em uma gaveta qualquer da escrivaninha, e riscou as páginas em branco, dividindo-as em duas colunas: “mortes pacíficas” e “mortes dolorosas”. Mas logo achou essa classificação muito ampla e decidiu que, a cada nome de música adicionaria notas explicativas relacionadas ao tipo de morte com a qual mais combinariam. Adicionou a primeira música: Marcha fúnebre, Chopin, “mortes dolorosas”, especificações: “morte por atropelamento”, afinal, aquela que dera origem à sua empreitada merecia ser homenageada. Naquele dia, sentou-se na poltrona da sala e ouviu discos a procura das músicas perfeitas até o amanhecer. Adicionou Construção, Chico Buarque, coluna “mortes dolorosas”, especificações: “cair do último andar; ser esmagado pelo cotidiano e pelas injustiças sociais; ser empurrado da construção pelo sistema”. Melodia Sentimental, Heitor Villa Lobos, coluna “mortes pacíficas”, especificações: “morrer dormindo, morrer durante doces sonhos noturnos”.  Preciso me encontrar, Cartola, “morte dolorosa”, suicídio. Ne me quitte pas, Jacques Brel, e L’amour est un oiseau rebele, Bizet: “morte dolorosa/ morte pacífica”, especificações: “morrer de amor”.
Marcos tornou-se obcecado com a tarefa musical e com a ideia da morte, cada nota que ouvia agora lhe soava dura aos ouvidos, mas ao mesmo tempo mais compreensiva e íntima. Com o tempo, a morte instalou-se em sua casa, tomou posse dos cômodos e passou a observa-lo durante todos os segundos do dia. Quando saía de casa, lá ia ela, seguindo-o de perto, respirando em sua nuca, respiração com cheiro de amêndoas amargas, cantarolando a lista fúnebre que só crescia.
Ele não era de fazer amizades, nem mesmo na infância, as pessoas lhe davam preguiça e pareciam intraduzíveis. Exceto pela música e pela morte, vivia solitário, se isolara dos parentes e ignorava a vizinhança. Mas mantivera um ou dois colegas da época de suas incursões no mundo literário. Meses depois do evento que desencadeara sua obra de vida e morte, um desses colegas, professor de literatura brasileira com quem conversara algumas vezes, lhe telefonou. O professor conseguira ingressos para o concerto de uma famosa pianista e, lembrando-se da fixação do colega pela música, pensou em convidá-lo para assim colocarem o papo em dia e trocarem informações a respeito das novidades no campo literário e no meio musical. Ao menos foi o que ele disse a Marcos pelo telefone.   
Sempre tentado a mergulhar na selva de sons e ritmos, Marcos aceitou o convite, embora em um primeiro momento se sentisse muito pouco disposto a permanecer no mesmo espaço que outras pessoas, dividindo o mesmo ar, esbarrando-se e disputando, com olhos e narizes, quem absorveria mais daquela expressão de beleza. E de fato, logo que chegou ao local do concerto, Marcos foi tomado pelo pânico de se perder em meio àquela multidão uniforme de ternos pretos e vestidos bem passados. Enquanto o colega falava animadamente sobre os mais novos poetas queridinhos da crítica, entupidos com teorias e discursos pretensamente transgressores, Marcos dirigia-se rapidamente para seu assento, sem nem mesmo se dar ao trabalho de continuar a acenar a cabeça e resmungar “hum, hum” vez ou outra. Assim que conseguiram sentar, ele tentou se acalmar, sabia que assim que a música começasse a multidão ao seu redor, as conversinhas superficiais, os rostos iguais que lhe lembravam máscaras de cera, desapareceriam. Ele seria transportado para algum lugar feito só de sons, onde a vida parecia fazer sentido. Quando o concerto começou, Marcos fechou os olhos e respirou fundo tentando exalar aquele cheiro que só o ar preenchido de música adquiria, pronto para adentrar naquele lugarzinho único na sua mente.
Mas dessa vez havia algo de diferente, o quadro em sua imaginação murchava, desmanchava-se escorrendo em gotas cinzas, os ritmos não coloriam mais o ar, pareciam estéreis. Ele sempre tinha sido um espectro entre os homens, apenas a música lhe agitava o sangue e trazia vida, mas agora ela também tornara-se parte do mundo estéril e morto. Marcos não sentia mais seu sangue pulsar, a cada toque dos dedos da pianista nas teclas ele sentia seu corpo se decompor, como se cada nota produzida fossem vermes que lhe devoravam a carne e as entranhas. Apavorado, expulso de seu paraíso, percebeu que havia provado do vício que agora intoxicava sua mente. Sabia que sua relação harmônica com a música nunca mais seria a mesma, que entre eles, como em um triângulo amoroso, impusera-se uma terceira figura, tão forte quanto a música havia sido todos esses anos, a própria morte.
Ao chegar em casa, contemplou mais uma vez seu caderno, agora com as páginas totalmente escritas. A obra da sua vida quase finalizada. No único espaço em branco, no pé da última página, acrescentou em letras trêmulas: Requiem, Mozart, “morte dolorosa”, especificações: morte causada por uma escolha errada; obsessão; vício; veneno disfarçado de remédio, phármakon.   
Deitou-se logo em seguida, suando frio, tomado de melancolia e medo. Não levantou mais pelos próximos dias.  Sozinho, contorceu-se de febre por longas noites, nos lençóis empapados de suor. Devido a temperatura alta tinha alucinações em que a morte o amamentava e ninava-o com as músicas de sua própria lista. Sabia que ia morrer em breve, porque percebeu que aos poucos começava a gostar do sabor do leite que a morte lhe dava do peito pálido. Uma semana depois a febre enfim cedeu. Mas a sensação que tivera durante os momentos de alucinação não o abandonara, o gosto de leite azedo, com um leve fundo de amêndoas amargas, continuava em sua boca.
Assim que se sentiu mais disposto levantou-se da cama, tomou um longo banho e escovou os dentes esfregando a língua freneticamente. O gosto, contudo, permanecia. No dia do acidente, meses antes, a morte o chamara através de Chopin, utilizara sua paixão e vício para seduzi-lo e ele atendeu ao chamado. Sem se dar conta a acalentara com as melhores músicas de sua coleção, mais tarde a convidara para sua casa, a levara consigo para cada canto, cada linha de seu caderno era a história dele e dela, a trilha sonora dessa relação que se estabelecera, e agora ele havia tomado de mamar dos seios da sua nova amante. Sabia que não haveria volta, que estavam ligados por líquido, carne e música. O gosto na língua intensificava-se e o seu peito começou a doer. Pegou o caderno, guardou-o cuidadosamente em uma pasta e, carregando-a, saiu. Dirigiu-se calmamente para o hospital, sem saber exatamente porque isso ainda parecia necessário.  Por medo de morrer sozinho, talvez? Ora, mas ele já não estava mais sozinho. 
  No hospital, fizera inúmeros exames e ao fim de cada um o médico responsável parecia mais sério. Todavia, Marcos sabia que só sairia de lá de mãos dadas com sua fúnebre parceira. Ao final da sucessão de ressonâncias, radiografias, de agulhas espetando seu corpo e fluidos sendo extraídos e analisados, o médico o chamou para sentar-se na cadeira em frente à mesa. Antes que dissesse qualquer coisa, Marcos o interrompeu: “ainda é possível fazer algo, doutor?”. Esse balançou a cabeça com calma e tentou um sorriso de consolo: “-Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”. Marcos pensou: Invierno Porteño, Piazzolla, “morte pacífica”, especificações: ...
 Tirou, então, o caderno da pasta, o abraçou, mas não anotou a última música. 


25 de fevereiro de 2015

Toda forma de amor

- Vai para a rua de novo?
- Preciso sair daqui ou vou enlouquecer.
- Deixa de bobeira e fica aqui comigo. Se aconchega em mim e me conta suas angústias...
- Mas é justamente delas que estou querendo fugir. Nada de desabafo e aconchego hoje, preciso me perder na multidão.
- Hum... colocou perfume novo, vai encontrar com ele outra vez?
- Não vejo porque deveria te responder isso.
- Você sabe que com esse também não vai dar certo, não é? Uma perda de tempo...
- Dessa vez pode ser diferente...
- Não vai ser, acredite. Logo ele vai descobrir suas loucuras e você as dele e em alguns meses vocês vão estar se odiando. Foi a mesma coisa com o outro, lembra? As pessoas nunca vão se entender, faz parte dessa natureza contraditória de vocês entre a carne que atrai e a mente que repele. Já no nosso caso...
- Como você é pessimista e ciumento, eu que te deixei assim?
- Apenas me moldo aos seus contornos. Desiste dessa ideia logo, você acha mesmo que vai ter mais conforto nos braços dele do que nos meus?
- Acho sim. Você até já foi confortável, mas agora está esburacado, gasto e precisando de um estofamento novo.
- Nada disso, como expliquei, eu me adaptei ao seu modo, incluindo as curvas do seu corpo.
- Velho!
- Anatômico!
- Acho que vou ligar para o seu Zé e pedir para ele dar uma geral em você.
- Justo agora que virei seu encaixe perfeito? Não faça isso, fomos feitos um para o outro.
- Por que você tenta me seduzir assim?
- Porque quero te ver desabando no meu estofado. Olha aqui minhas manchinhas, não te lembram os bons momentos que passou em mim?
- Não foram bons momentos, geralmente eram de tédio ou de tristeza...
- Momentos de descanso e de alento. Sempre te abracei quando você precisava. Além disso, sejamos honestos, na rua você só vai encontrar motivos para desmoronar em mim novamente.
- Preciso do mundo, você me suga...
- Eu te amo.
- ...
- Tira essa roupa, coloca a camisola e se perde aqui em mim.
- Ok, você venceu. Espera aí que vou pegar um livro e a almofada nova que comprei pra gente.  


30 de janeiro de 2015

Diálogos amorosos

- O que você pensa sobre o fato do mundo estar se desfazendo pouco a pouco?
- Oi?
- O mundo...
- Que que tem?
- Se desintegrando...
- Tipo o apocalipse?
- Ah, não. Nada tão glamouroso assim. Penso mais em um processo de longa duração... você sabe, assim como eu e você pouco a pouco deixamos de existir, o mundo também se desmancha com o passar das eras. Primeiro nós, depois nossos costumes, nossa sociedade, o sistema que nos manteve escravos por tantos séculos... lentamente nossa espécie, água, vida, rochas, deteriorando-se e transformando-se apenas na areia do tempo, e depois... depois o tempo, que sem a vida estaciona-se em uma eternidade estéril.
- Cara, você fumou?  
- Não, poxa! Só tô tentando compartilhar com você algumas ideias que tem passado pela minha cabeça esses dias. Você não acha que a nossa relação deve se basear em mais do que intimidade carnal?... e não me chama de cara, eu não sou um dos seus coleguinhas. 
- É sobre isso que você tem escrito a semana inteira? Tô falando, fumou alguma coisa enrolada na página de algum livro de filosofia de banca.
- Livro de filosofia de banca?
- É, cara... quer dizer, amor. Não tem aqueles romances vagabundos de banca? Então, o conceito é mais ou menos o mesmo.
- Mas você não sente falta de ar quando pensa nisso?
- Nos romances de banca?
- Em nós e no mundo, acabando-se pouco a pouco, desfazendo-se que nem costura mal arrematada, e virando... nada.
- Claro que não. A falta de ar que estou sentindo é por conta desse abafamento dos infernos, para todo o resto existe o álcool. Liga aí essa merda de ventilador.
- Para cima ou para baixo?
- Para baixo. Cara, você é estranha, amor...