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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

31 de janeiro de 2016

Do asfalto

Chego às três da tarde com o asfalto quente derretendo sob meus pés. Sei que não morri pois, ao olhar para trás, vejo pegadas. Não fosse por isso poderia ser um sonho. Não fosse isso e eu poderia não existir.
O carro, que atravessa a avenida às três da tarde, me joga a alguns metros de tal modo que meu corpo afunda no rio negro que é a rua, na torrente infecta que é a cidade. Percebo que existo porque meu corpo estendido faz sombra no asfalto mole, molda a lama preta que me engole. Sei que vivo ao vislumbrar o meu sangue ralo tingindo o meio fio às três horas da tarde de sábado. Se não sangrasse talvez eu estivesse morta. Ou talvez o sangue também não prove nada.
A ferida na minha coxa, onde a placa do carro rasgou a carne, me lembra que eu tenho um corpo, que sou pele, músculos, ossos e cabelo. A náusea que me toma também testifica que eu tenho órgãos, estômago, tripas, fígado. Mas ter um corpo não me faz existir, ainda que eu tenha fibras, ainda que tenha nervos que gritam ao sol das três da tarde de um sábado.
Ao contrário, percebo que existo porque reparo na flor miúda e pálida que brota da rachadura do passeio. Percebo que ela me encara, que aguarda meu movimento final. Partilhamos do mesmo ar enquanto ela me espera. E se ela é e me olha, sei que existo e que sou.  

9 de janeiro de 2016

Papel de jornal sempre solta tinta

            Fazia pouco mais de um mês que eu começara a ter problemas para dormir. Não sei se posso dizer que sofria de insônia. Eu não tinha, exatamente, dificuldades para adormecer e também não costumava despertar durante a noite como dizem ser comum. Na verdade, depois que adormecia, meu sono era tranquilo e profundo, de tal modo que muitas vezes encontrava grande dificuldade para despertar. De fato, como me levantava tarde, costumava dormir até dez horas por dia. Meu problema era o pavor que sentia daqueles períodos silenciosos que antecedem o mergulhar no sono. Esses minutos em que era forçada a ficar apenas com minha mente até o adormecer fizeram com que eu buscasse adiar ao máximo o momento de cerrar os olhos e me entregar. Criei artifícios para não ter que enfrentar esses minutos assombrosos de zunido na minha mente. Recorria à literatura ou, quando me sentia muito cansada, ligava algum filme na TV do quarto, uma história supérflua de preferência, para que a minha cabeça pudesse descansar e a programação servisse apenas de ruído, sussurros ininteligíveis que preenchessem o ambiente. Por meio dessas estratégias me forçava a permanecer atenta até que meu corpo não suportasse mais e minhas pálpebras se fechassem sozinhas de exaustão.
Tais artifícios me possibilitavam burlar as etapas que precedem o sono, mas também me proporcionavam experiências inesperadas. Ao me impor o estado de alerta chegava um momento, alguns segundos antes de desmaiar de cansaço, em que me perdia em um estado fluído entre o sono e a vigília. Esses instantes, em que sonho e realidade podiam dialogar e se confundir, expunham novas perspectivas à minha mente que, imersa no onírico, agora já não podia mais ser censurada pelo meu pavor. Parcialmente adormecida, trechos de livros que eu me obrigava a permanecer lendo até os olhos arderem de cansaço se misturavam com imagens do meu inconsciente, resultando em insólitas reflexões. O mesmo ocorria com os filmes cujas cenas se embaralhavam com meus devaneios.
            Foi em um desses segundos de confusão que, em mais uma noite fugindo da espera solitária pelo sono, saltou das páginas do livro que estava lendo a questão: “O que você esconde por trás da pele?”. As palavras pairavam em tinta preta a alguns centímetros do papel, enquanto o restante do livro perdia o foco em cinza desbotado.  Quando acordei a frase continuava a me atormentar e por mais que repassasse os trechos lidos do livro, não conseguia localizá-la. Nas noites seguintes a pergunta continuava a aparecer sempre que o entorpecimento distorcia a minha realidade. Não importava o livro, era sempre ela a dançar diante de mim, com o mesmo tom de escárnio, ou assim interpretei.  
            Embora eu conseguisse dormir por horas sem interrupção, a necessidade de adiar o adormecer fazia com que na maior parte das vezes eu caísse no sono apenas de manhã, o que me proporcionou não apenas olheiras bem marcadas, mas uma sensação de fadiga constante. A letargia paralisava meu corpo e mente, quadro que se agravava pelo fato de eu estar desempregada e passar as horas no sofá. Nesses momentos, entregue à indolência e aos apelos das almofadas macias nas quais me afogava, aquela pergunta estranha ressurgia. Quanto mais as olheiras me tomavam o rosto, mais insistentemente as palavras pulsavam diante de mim e paralisavam meu pensamento. Sempre tive predisposição às obsessões.
            Decidi que naquela noite seria melhor não abrir nenhum livro e preencher a espera silenciosa pelo sono com a TV. Quando os sonhos começaram a invadir meu quarto ouvi, num assombro, o protagonista do filme que rodava no DVD perguntar: “O que você esconde por trás da pele?” Embora sonolenta, a frase chamou minha atenção e com muito custo tentei me concentrar nas imagens que piscavam na tela. O personagem parecia olhar para mim e mais uma vez me questionou.
          Eu precisava descobrir o que abrigava dentro de mim para, enfim, poder dormir em paz, sem subterfúgios, sem pavor. Só assim minhas olheiras desapareceriam e eu pararia de alucinar. Levantei meio sonâmbula e fui até o banheiro procurar uma tesoura de unha. Assim que a encontrei dentro da primeira gaveta tentei controlar minha mão direita cuja coordenação se deixara afetar pelo sono. Quando senti que meus dedos estavam firmes cortei um pedaço da pele do braço esquerdo, corte pequeno, porém, fundo. Saiu menos sangue do que eu esperava. Abri a torneira e coloquei a ferida debaixo da água fria, lavando o pouco sangue que brotara do corte.  Quando senti que estava limpo o suficiente, tentei abri-lo o máximo que conseguia para enxergar melhor o que se ocultava ali. Havia, de fato, algo que não se assemelhava a carne lá dentro, mas pelo pequeno buraco não era possível identificar do que se tratava. Estimulada pela descoberta fiz um outro corte no braço, dessa vez bem maior. Mais uma vez quase não houve sangue e tampouco encontrei carne, o que se escondia por debaixo da minha pele, pude então perceber, era papel. Mesmo com umas pequenas manchas de sangue notava-se que havia algo escrito ali, embora não conseguisse decifrar o que era.
            Fui até a cozinha e com uma faca retirei o resto de pele daquele braço. Não sei dizer se senti dor, o torpor no qual me encontrava parecia ignorar quase tudo, exceto meus olhos que inexplicavelmente ardiam. Além disso, eu era, percebia agora, feita de papel e talvez todas as vezes que senti dor não tenham passado de uma ilusão, um ardil do meu cérebro. Quando cortei a pele do braço direito, no entanto, senti grande dificuldade, afinal, de carne ou de papel, eu continuava sendo destra. Retirei também a pele das pernas e ali encontrei o mesmo, pouco sangue e nenhum músculo, no lugar apenas um papel fino tomado por letras pretas. Embora restasse pouco espaço em branco no papel, eu não conseguia ler o que estava escrito pelo meu corpo. Concluí que o texto só se revelaria quando eu me despisse de toda a epiderme que me escondia, que calara por anos o que eu de fato era.
A manhã já avançava quando terminei. Ao olhar no espelho pude contemplar, pela primeira vez, a minha verdadeira forma. Para o meu desespero, no entanto, finalmente percebi que os escritos em mim não passavam de letras aleatórias, sem qualquer significado.