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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

19 de novembro de 2015

O novo ano tem cheiro de naftalina

É fim de ano. Os gatos andam assustados, com o rabo entre as pernas. Sorrateiros, se encolhem e esfregam a barriga no chão tentando se esconder embaixo da terra. Se enfiam em buracos e frestas, nos mínimos vãos. Sentem medo, farejam no ar a farsa do antigo vestido em uma nova roupagem que cheira a pólvora e espumante barato. São nove da noite, chequei meu e-mail: inúmeras mensagens entupindo minha caixa de entrada com votos genéricos de felicidade. Apaguei-os um a um. Poderia ter selecionado todos de uma só vez e enviado para a lixeira, mas senti prazer em deletar e-mail por e-mail com tranquilidade, como demoradas alfinetadas em cada um de meus remetentes. A festa já havia começado fazia tempo e eu estava atrasada, pensando nos gatos, pensando na pólvora, pensando na farsa.
Cinco para as dez, estou pronta para ir. Estou bonita, em um vestido branco colado, o tecido de renda destaca bem os meus seios e os meus quadris. Branco sempre me vestiu bem, mas hoje me sinto ridícula, uniformizada em meio a uma multidão de pessoas que se assemelham a ovelhas, tanto na cor quanto na passividade. Fico com raiva e enfio uns sapatos vermelhos.
Dez e vinte. Logo que chego, tio Carlos diz que eu me pareço uma princesa, me aperta as bochechas e dá uma piscadela enquanto sussurra “Carol, minha bonequinha”. Não sabia que ele estaria lá, entendo a referência e me assusto, volto a ter seis anos.
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Vovó sempre dizia que tio Carlos era um brincalhão, que aporrinhava as meninas, mas era só de graça. Mas desde que eu era criança nunca havia achado graça no tio Carlos. Titio gostava de pegar as sobrinhas no colo, mas não era colo gostoso de pai, chamava a gente de “namoradinha” e vez ou outra me virava e mordia minhas coxas. Titio também pedia para ver as nossas calcinhas, dizia que tinha curiosidade, porque nunca tinha visto calcinhas tão bonitas assim, rosinhas e de lacinhos. A gente obedecia e mostrava, porque titio era adulto, mandava, e nós éramos suas “bonequinhas”. Mas sempre que encontrava com ele sentia minha garganta contraindo e passava o resto da semana com as amídalas inflamadas e doloridas. 
Desde que me lembro minha garganta sempre foi o ponto mais frágil do meu corpo. Certa vez tive uma crise de amigdalite que me impediu de comer qualquer coisa sólida. Era janeiro, época do ano em que costumava ir para a casa de praia com meus pais e minhas primas. Daquela vez tio Carlos também tinha sido convidado para nos acompanhar na viagem. Embora eu tenha passado uma semana me divertindo com banhos de mar, brincadeiras na areia e passeios na praça, o que a lembrança dessas férias me traz, ainda hoje, é um peso nos ombros e no estômago que parece me fazer diminuir vários centímetros. Foi também nesse período que, apesar de já estar prestes a completar oito anos, minha prima Bete voltou a fazer xixi na cama, embaraço que a acompanhou todas as manhãs, na hora de despertar, não só durante nossas férias mas até os seus dez anos. 
Em uma de nossas tardes na praia, tio Carlos levou Bete para dar um passeio, iam comprar sorvete, ele disse. Naquela manhã eu havia acordado com a garganta quase fechada pelo inchaço das amídalas, fui obrigada a permanecer na cama e expressamente proibida de tomar qualquer coisa gelada. Quando Bete voltou, ela teimava em não me contar de que sabor tinha sido o sorvete e porque não trouxera um escondido para mim. Fiquei com raiva e puxei os cabelos dela, Bete chorou e eu passei o resto do dia de castigo, lamentando a garganta inflamada e o sorvete de morango que tinha certeza que Bete tomara inteirinho, sozinha. 
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Dez para meia-noite. Evitei nosso tio a festa inteira. Bete não viria, disseram que tinha planos com o marido e uns colegas do trabalho. Não esperava mesmo encontrá-la, há anos ela se distanciara da família. Olhei ao redor, tio Carlos estava sentado no canto da sala, sozinho, encolhido como se tentasse se fundir na parede. Tinha envelhecido muito, com seus ombros caídos, tão encurvado que parecia querer sumir dentro de si mesmo. Nossos olhares se cruzaram e o que vi foi o vazio por detrás daqueles olhos vermelhos. Tremi.
Meia-noite. Primo Marcus estourou o champanhe. Nos abraçamos em uma confusão de branco, espuma e felicitações. Meu sapato vermelho dançava naquela massa e me lembrava que eu tinha cor. Marcus me abraçou apertado e me beijou na ponta do nariz. Ninguém abraçou tio Carlos, exceto vovó. Ele permanecera sentado na poltrona no canto da sala. Mas ela, com seu passinho arrastado, levou para ele uma taça de champanhe e um pratinho com torradas e doces, abraçou o filho com tanto carinho que parecia preencher o oco que era o corpo dele. Senti meus músculos se contraírem e o bolo que se formou na minha garganta bloqueou a bebida. Cuspi de volta na taça.
Meia-noite e vinte. Entrei no carro e dirigi rumo a minha casa. Não conseguiria permanecer naquela festa. Não queria pensar mais em tio Carlos, em calcinhas de lacinho, naqueles olhos caídos e vazios, em Bete e seu distanciamento, na família omissa e em vovó que afirmava que o filho “era um bom menino, só que muito brincalhão, gostava de aporrinhar as mocinhas”, mas tinha na voz um tom triste de dar dó.

Vinte para uma. Já no sofá, espanto com as mãos as histórias do passado que aquela festa desenterrara. Apago titio, apago vovó. Olho para os meus sapatos vermelhos, é um novo ano. Penso em pólvora, penso em espumante barato, em branco tedioso, penso em gatos se esgueirando, sorrateiros pelos telhados, escondendo-se em buracos... pressentindo, com medo, que o novo é só o velho, fantasiado de tule e seda, cheirando à naftalina.