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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

29 de julho de 2015

Urbana

Minhas botas batem nas pedras em mosaico da calçada. Compõem música, a cada passo ritmado, que ecoa pelas ruas vazias da cidade. Sou uma escultura de ossos quebradiços, papel e metal enferrujado. Meu cabelo, pele e neblina se confundem em meio a madrugada, escorrem do passeio ao asfalto em cascatas de água salgada.
Não pedi que você me acompanhasse ao inferno. No entanto..., no entanto..., sua sombra cobre meu corpo enquanto caminho pelos becos da cidade. Me pesa os ombros, peito, pés e pescoço, verga meu corpo em direção à poeira da calçada. Com as mãos em concha eu bebo a água empoçada, quente, grossa, suja. Se na chuva ela me cura, colhida da poça me envenena garganta, fígado, alma.

Vejo partículas da minha pele, fios de cabelo, perdendo-se em meio as rachaduras do passeio e, embora a roupa me cubra, quase, quase não me resta pele. A boca do tempo me alcança na madrugada, me mastiga, rumina, vomita. E se na luz do dia me ilumino, eu me desfaço, desintegro, na noite da cidade.  

6 de julho de 2015

Respiração

Puxo o ar pelo nariz, conscientemente encho os pulmões, solto pela boca. Tento de novo, mas não consigo manter o ritmo, solto o ar antes que o pulmão esteja cheio, puxo antes que esteja todo vazio. Confundo os movimentos respiratórios, qual era o certo mesmo, encher o peito ou o abdômen? Começo a sugar o ar pela boca como se estivesse bocejando, mas não é sono, é só urgência em suprir a falta de ar que o exercício, executado errado, me proporciona. Começo a ficar tonta e me esqueço de como respirar naturalmente. A ansiedade me faz esquecer também como piscar os olhos e como engolir saliva automaticamente. Passo a controlar os movimentos: fecho os olhos, abro, puxo o ar, solto, engulo o cuspe.
Ajeito o telefone no gancho, apago a luz da sala, ainda tonta pela forma desregular que o ar entra nos meus pulmões, e volto para o quarto. Paro na porta, fecho os olhos, abro. Puxo o ar, solto. Engulo saliva.
Ele desvia o olhar do livro e me encara meio debochado, meio irritado:
- Por que você tem mania disso?
- Isso o que?
- Vez ou outra começar essa respiração descoordenada.
- São exercícios respiratórios, ué. Dizem que relaxa.  
Era mentira, mas de que outro modo poderia explicar que havia me esquecido como se respirava? Isso para não falar na saliva que se acumulava na minha boca e que eu tentava disfarçar, preparada para engolir discretamente assim que ele voltasse para a leitura.
Ele dá uma risada que parece mais um sopro de impaciência, como se empurrasse todo ar com a garganta enquanto mostrava os dentes amarelados de café e cigarros.
- Não me parece muito relaxante. Na verdade, você me parece até meio roxa. Quem era no telefone?
Fecho os olhos, com força, abro. Esqueço de puxar e soltar o ar antes de engolir a saliva e engasgo.
- Você sabe...
- Mas hoje nem é seu aniversário... aconteceu algo?
- Convite para o almoço de dia dos Pais... Casa dele.
- Entendo... e nós vamos?
Esqueço novamente como se respira. Sugo o ar pela boca, como se bocejasse, mas na verdade só anseio por encher meus pulmões de ar. Esqueço como se pisca e como se engole a saliva mecanicamente. Fecho os olhos, abro. Puxo o ar com o nariz, com todo o corpo, mas solto antes mesmo de sentir o peito cheio. Parece que me afogo. Engulo cuspe. Engulo de novo.
- Posso entregar o cartão de felicitações em branco?