Pedro
aguardava no hall do hotel, em uma poltrona de couro que se ajustava ao peso do
seu corpo. Do lado um piano de cauda fechado, mudo, um cadáver no saguão. No
teto, um lustre de cristal que dançava com a brisa que passava pela porta de
entrada a cada vez que essa se abria. Mais uma vez a grande porta de vidro se
movimentou e o lustre sacudiu: plim, plim, plim. Da rua entrou uma bela mulher
em um vestido preto e bem cortado. Nos pés usava sandálias de tiras de couro.
Ela ajeitou os cabelos desordenados pelo vento de agosto e se dirigiu ao balcão
da recepção.
Enquanto
isso, Pedro preparou a câmera do celular discretamente e assim que ela deixou o
balcão, ele começou a filmar, acompanhando o andar seguro e elegante da mulher
até que ela sumisse atrás da porta do elevador. Ele pausou a filmagem e sorriu
satisfeito: “mais uma”. Logo em seguida, um senhor de barba branca saiu do bar
do hotel. Ele demonstrava dificuldades para andar com seus sapatos de couro
duro. Pedro preparou a sua câmera mais uma vez e com ela seguiu os passos
arrastados do velho.
Ainda
criança, Pedro adquirira a mania de colecionar tudo o que lhe despertasse a
sensibilidade. Seu pai o havia iniciado nas tradicionais coleções de selos,
moedas, carrinhos e até mesmo tampinhas de garrafa, mas logo nos primeiros
meses de incursão no mundo das coleções o então menino demonstrou grande
criatividade e capacidade de inovação. Percebeu pouco a pouco quantas
características exclusivas e fascinantes cada pessoa possuía e, vistas através
de seus olhos de colecionador, tais traços gritavam a necessidade de serem
registrados, catalogados e devidamente preservados.
Notou,
pela primeira vez, seu interesse pelas individualidades dos outros quando sua
família se mudou para um sítio no interior. Logo que chegaram foram
recepcionados pelo vizinho e sua família. O cheiro que desprendia daquele homem
despertou sua atenção. Da pele, que começava a enrugar, exalava uma fragrância
mista de terra molhada, suor, queimado de sol e sabão. Percebeu que era
diferente de tudo o que sentira nas outras pessoas, na cidade os odores se
misturavam com fumaça e poluição, tornando-se indistinguíveis, mas ali, naquele
ar fresco do campo, o menino podia perceber cada novo odor. A esposa e filhos
do vizinho também cheiravam cada um a seu modo, cada um uma mistura inovadora
de odores cotidianos. Aproximou-se de sua mãe, abraçou-a pela cintura, afundou
o rosto na barriga dela e puxou o ar com força pelo nariz. Descobriu então, que
o cheiro dela também era único, doce, suave, leitoso.
A
partir daquele dia passou a farejar o cheiro de cada um que encontrava. E como
não descobrira um modo de preservar cada novo odor que descobria, procurava
registrá-los na memória. À noite, antes de dormir, repassava mentalmente cada
um dos cheiros que tinha descoberto durante o dia. Procurava reviver a sensação
que cada um havia lhe despertado, se tinha feito cócegas nas suas narinas, se lhe
abrira os pulmões mediante um perfume agradável, se lhe causara arrepios e
contrações de nojo. Mas logo, apenas a memória não bastava mais, decidiu,
então, colecionar as peculiaridades de cada pessoa que conhecesse.
De
início foram as letras. Únicas e tão reveladoras, traços de tinta que diziam
mais do que apenas aquilo que fora gravado no papel. Pedro guardava cada carta
que chegava em sua casa, fosse ou não destinada a ele. Guardava-as não pelo
conteúdo, é claro, mas pelas letras que exibiam. Logo passou a revirar o lixo
da vizinhança a procura de um pedaço de papel, mínimo que fosse, que contivesse
uma anotação à mão. Preencheu duas gavetas de arquivo com amostras das mais
diversas letras, mas com o tempo, aquilo também não satisfazia mais,
parecia-lhe ainda muito impessoal. Suas coleções precisavam se aproximar o
máximo possível das pessoas. Um dia ouviu a risada escandalosa de sua tia vindo
da cozinha e percebeu que nada poderia ser tão pessoal quanto aquilo. Com o
velho gravadorzinho que havia sido do pai iniciou sua coleção de gargalhadas.
Primeiro
se limitou a membros da família. Em todas as comemorações lá estava ele com o
gravador a postos. Mas como todo colecionador, ambicionava sempre mais. Logo
passou a dar demorados passeios pelas ruas e praça da cidadezinha, os dedos
atentos no botão de Rec ao menor sinal de riso dos transeuntes. Das risadas
emendou uma coleção de vozes. Vozes bonitas, vozes engraçadas, vozes graves,
agudas... ele gravava de tudo e depois era capaz de passar o dia escutando-as e
organizando-as nas mais distintas classificações que podia criar.
Quando
completou vinte anos, Pedro decidiu se mudar. O sítio da família e as poucas
ruas da cidadezinha eram pequenas demais para suas ambições de colecionador. Como
desculpa, tinha as possibilidades de estudo que só a cidade grande podia
proporcionar, justificativa que convenceu a mãe, preocupada diante da decisão
do filho de abandonar o lar. Com a ajuda dos pais alugou um apartamento de dois
quartos, um desses destinado a acomodar as coleções que, obviamente, seguiram
Pedro na mudança.
Alguns
meses após se mudar, entrou na faculdade de comunicação, mais para satisfazer
os pais do que por desejo, no entanto longo percebeu que curso lhe seria mais
útil do que supunha. Aprendeu sobre fotografia e sobre como manejar uma filmadora,
técnicas que passou a aplicar em suas caças por detalhes colecionáveis. Durante
a tarde trabalhava em uma loja de eletrônicos e, graças ao dinheiro que
conseguiu juntar, comprou uma máquina fotográfica profissional com a qual
caçava sorrisos, andares e gestos pela rua.
Nas aulas da faculdade sentava-se no fim da
sala, local ideal para observar cada pessoa da classe. Desde o início do
semestre ficara encantado com a visão dos cabelos de seus colegas. Mais do que
isso, de fato encantara-se com a forma como cada um movimentava os fios com as
mãos: alguns coçavam, outros alisavam, outros enrolavam mecha, por mecha com os
dedos. Discretamente filmava o espetáculo que dançava na sua frente, sem nem
mesmo perceber o professor que se desfazia em explicações e teorias diante do
quadro. Mas quem mais lhe chamava atenção era Carla, a garota que se sentava na
carteira em frente a sua. Na verdade, não era propriamente Carla que despertava
fascínio, nem seu longo cabelo visto de trás, tampouco a forma como vez ou
outra ela penteava os fios com os dedos. O que prendia o olhar de Pedro era a
mecha que insistia em permanecer solta sempre que a menina amarrava os cabelos
em um coque. Ele se apaixonou por aquele único cachinho na nuca que se rebelava
contra o penteado malfeito. Aproveitava a posição estratégica para tirar tantas
fotos quanto possíveis daqueles fiozinhos ralos. A memória de seu celular
sobrecarregou-se de imagens daquela mecha, mas ainda assim ele não se sentia
satisfeito. Adotou táticas para tirar fotos com sua câmera profissional sem que
Carla percebesse, seguia-a pela universidade, pelas ruas, mas as fotografias em
melhor qualidade também não eram suficientes. Revelou várias das fotos, e
dedicou a elas um painel especial em sua coleção, mas longe de atenuar sua
paixão, Pedro sentia-se cada dia mais obcecado.
Aconteceu
no dia que Carla usou um novo shampoo, cujo odor de frutas vermelhas exalava.
Pedro notou a mudança logo que a garota se sentou na sua frente, o cabelo preso
em um coque e a mecha teimosa solta na nuca. Soube então que não resistiria
mais, precisava cheirar aqueles fios, tocá-los, sentir a textura na ponta de
seus dedos. Pegou uma tesoura de dentro do seu estojo e com a respiração
irregular, sintoma claro de sua ansiedade e excitação, cortou aquele cacho que
pendia na nuca da garota. Carla não teve tempo sequer de reagir, quando olhou
para trás assustada, ele já se levantara e saia correndo da sala, com os fios
de cabelo presos na mão. Não voltou mais. Envergonhado, abandonou a faculdade,
cortou contato com os poucos amigos que tinha feito e passou a se dedicar
exclusivamente às suas coleções e ao emprego na loja.
Aquela
mecha de cabelo ganhou lugar de destaque no quarto onde ele organizava suas
preciosidades. Mas fora da nuca da garota a qual pertencia, ela perdia seu
encanto. Pedro passava longas horas olhando-a, e se dava conta de que longe da
moldura branca formada pela pele de Carla, longe dos movimentos daquele
pescoço, do perfume que se espalhava do couro cabelo aos fios, aquelas mechas
isoladas perdiam o encanto, estavam mortas.
Tomado pela frustração, Pedro percebeu que sua coleção toda
parecia morta, um mausoléu de pedacinhos de gente que, em grande parte, jamais
voltaria a ver. Deu-se conta, também, de que ela estaria sempre incompleta, por
mais que saísse em busca dos detalhezinhos maravilhosos de cada pessoa nova que
encontrasse, milhões de outros passariam despercebidos, enquanto outros tantos,
ainda, se esconderiam por aí, distantes de seus olhos, eternamente desconhecidos.
Correu a vista pelo quartinho atulhado por sua empresa impossível, aquele
cemitério de caixas e arquivos sem sentido e, angustiado, sentiu que sua maior
falha era não enxergar a si mesmo naquele amontado de papéis, fotos e filmes. Encarou
seu reflexo no vidro da janela e sentiu que quase não existia, soube, então, que
precisava ser registrado, que precisava dar a sua vida à sua coleção morta.
Determinado, cortou várias
mechas de seu cabelo e colocou-as junto com as fotos e filmagens dos mais belos
fios que havia encontrado, bem como as mechinhas que conseguira pegar
discretamente dos salões e barbearias. Não as misturou com o cachinho de Carla,
por mais sem vida que estivesse, seu lugar ainda era no pedestal. Aparou as
unhas e guardou aquelas pontinhas brancas, levemente amareladas, na caixinha destinada
a recortes de revistas com mãos de modelos sem rosto, mas com unhas perfeitamente
esmaltadas, e vídeos de manicures tratando as unhas de suas clientes, feitos
furtivamente em suas espionagens. Olhou para a sua pele, notou o tom dourado e
percebeu que era digno de ser preservado, tirou fotos do antebraço, onde a cor
se fazia mais bela, tomando precauções para que a luz alterasse o mínimo
possível sua tonalidade na fotografia. Gravou sua risada, seu choro, seu andar
e a cada um destinou o local correto em seus arquivos. Dias se passaram nesse
processo, até que ele pudesse olhar seu trabalho e, orgulhosamente, dá-lo por
encerrado. Sabia que jamais poderia colecionar todos os traços e gestos das
pessoas por quem passava, mas sabia agora que não era disso que sua tarefa se
tratava: Pedro jurava, com os pés bem juntinhos, que quem soubesse olhar
atentamente sua coleção, nela seria capaz de ler toda a sua vida.