Acordei
certa manhã com uma incômoda sensação de leveza, queria sentir o peso do meu corpo
sendo direcionado ao centro da terra, mas ao invés disso, desde que havia me
levantado era como se levitasse alguns milímetros do chão. Como o acordar sempre
me fora árduo, acreditei tratar-se de um mal-estar passageiro, que logo se
remediaria com uma caneca de café forte. Foi o que fiz. Trabalhava só a partir
das nove, então, todos já haviam saído de casa quando me levantei e, como de
costume, tomei o lanche da manhã sozinha. Comi torradas com manteiga e tomei
café puro, sem açúcar. O alimento e o líquido escuro fizeram efeito imediato na
minha mente e no meu humor sempre oscilante durante as manhãs, a sensação de
leveza extrema, no entanto, não passou. Me sentia estranha, então voltei para a
cama por mais alguns minutos, a impressão de estar embriagada e o calorzinho
que o café deixara no meu estômago me fizeram cochilar. Acordei um tempo
depois, atrasada e com a mesma sensação incômoda. Sem pensar muito, vesti a roupa
passada na noite anterior e saí com pressa, sem tempo para me olhar no espelho
ou para escovar os dentes. Chupei uma bala de hortelã no caminho.
O metrô estava lotado e carregava o
odor acre característico das multidões. Notei que todos me
encaravam e, como ainda não havia me olhado no espelho, verifiquei a roupa e os
sapatos, apalpei os cabelos e me cheirei discretamente. Não parecia haver nada
de errado, mas por trás dos olhares julguei ver repulsa e medo, talvez até uma
luz de curiosidade. Achei que poderia ser apenas mais uma das minhas neuras, ou
que talvez minhas olheiras estivessem muito evidentes sem a maquiagem. Apertei
a pasta e a bolsa contra o peito, por puro desconforto, até o fim da viagem.
Cheguei ao trabalho com a intenção de ir direto ao banheiro para verificar
minha imagem no espelho, mas logo que entrei fui impedida. Meus colegas
reagiram de modo estranho ao me ver, olhei o relógio... não, não estava
atrasada. Um deles trouxe meu chefe, que imediatamente perguntou o que havia
acontecido e me aconselhou a tirar o dia de folga e procurar um médico assim
que possível. Acredito que ele tenha percebido que eu não tinha ideia do que
estava se passando, porque me pegou pelo braço, me levou até o banheiro mais
próximo e, na porta, pediu para que eu me examinasse bem no espelho grande que
haviam pendurado em uma das paredes. O que eu vi me deixou apavorada. Cada
camada da minha pele havia se tornado transparente como vidro. O café da manhã
revirou no meu estômago, não sei se de medo ou de nojo. Não lembro bem o que
fiz a seguir, mas logo que recuperei parte do meu controle fechei bem o casaco
para que esconder o máximo de pele possível e chamei um táxi.
Quando cheguei ao hospital fui
imediatamente atendida, o que me levou a crer que a possibilidade de enxergar o
que havia em meu rosto por debaixo da pele transparente deveria de fato
assustar. Fiz exames dos quais nem me recordo, passei por diversos médicos, das
mais distintas especialidades, mas nenhum foi capaz de explicar o que estava
acontecendo com meu corpo. Como não sabiam o que fazer e já que eu não
apresentava qualquer outro sintoma ou mal-estar, exceto o pânico e aquela
maldita sensação de leveza, me receitaram um calmante e me mandaram para casa.
Senti que pareciam aliviados em me ver indo embora. Talvez devesse ter
insistido para que me internassem, pois nenhum calmante poderia amenizar a
sensação ruim que tive ao notar o olhar de medo do motorista do táxi durante o
percurso.
Agradeci a todos os deuses por ainda
não haver ninguém em casa. Já havia passado da hora do almoço e eu ainda não
comera nada, os problemas sempre me fecharam a garganta e o estômago, portanto,
me satisfiz com algumas torradas meio murchas que deixei na mesa de manhã. Fui
imediatamente para o banho e me sentei de baixo do chuveiro, com os olhos
fechados, por um longo tempo. Quando senti que a água quente me relaxara um
pouco saí, sem nem me dar o trabalho de me enxugar com a toalha, e fui direto
para o espelho do quarto. Me olhei, nua e ainda pingando água morna. A pele
estava fina, translúcida, principalmente nas regiões do rosto, peito e abdómen.
Mas não apenas a pele, músculos e órgãos também estavam se tornando
transparentes, de forma que era possível ver tudo o que se passava dentro de
mim, como em um aquário. Vi então as
torradas que tinha acabado de comer e, antes que pudesse reparar em qualquer
outra coisa, corri até o vaso sanitário para vomitar.
Já era noite quando eles chegaram
agitados. Eu havia me embrulhado em um sobretudo, apesar da temperatura
agradável, e me escondera debaixo das cobertas. Não prestei atenção quando
vieram me contar a respeito do passeio que fizeram depois da escola e nem me
levantei para abraçá-los. Assim que as crianças saíram do quarto, no entanto,
achei que era hora de contar o que se passara ao meu marido. Seguiu-se o mesmo
comportamento que eu havia notado o dia inteiro, surpresa, medo, nojo e uma
certa curiosidade. Como eu estava muito nervosa, apesar das pílulas de calmante
com as quais me entupi, ele achou que eu deveria permanecer deitada, amanhã voltaríamos
ao hospital.
Os meses seguintes foram todos
gastos na procura de uma cura para a minha doença, se é que poderia chama-la
assim. Recorremos a todo tipo de ajuda profissional, desde os médicos mais
laureados (com os quais gastei todas as minhas economias), até métodos
alternativos com curandeiros e místicos. Quando meu marido sugeriu procurarmos
um padre especialista em exorcismos e manifestações sobrenaturais, achei que
era hora de parar. Ninguém sabia o que estava acontecendo comigo e, portanto,
não existia uma cura. A situação, além disso, se agravava. Com o tempo, não
apenas o que se passava organicamente em meu corpo era visível, como também
cada uma das minhas emoções e pensamentos. Era possível a qualquer um lê-los
como frases feitas dentro do meu corpo, com grandes letras púrpuras que se
formavam, cada hora, dentro de um órgão específico. Se estava com raiva,
palavras surgiam no meu fígado, descrevendo cada uma das minhas sensações. Se
estava triste, frases se emaranhavam no meu pulmão, enquanto meu estômago
tornava-se um livro mal redigido a cada uma das minhas crises de ansiedade. Mas
era principalmente no rosto que meus sentimentos e ideias eram escritos,
impedindo qualquer tentativa de me esconder. E foi isso, mais do que minha
aparência bizarra, o que tornou impossível meu convívio com os outros. Nenhum
sentimento podia ser dissimulado, eu era acompanhada e analisada por todos como
um peixe preso dentro do aquário.
Logo que a doença se manifestou abri
mão do emprego, sabia que minha aparência e também a procura obsessiva por
médicos impossibilitariam que eu continuasse no trabalho ao qual me dedicara
por anos. Passamos a nos sustentar apenas com o salário do meu marido o que,
junto com as despesas gastas nas inúmeras consultas, dificultou cada vez mais
nossas vidas. Me tranquei em casa. Não ia mais na rua e nem sequer abria as
cortinas, não sei se por medo dos vizinhos me verem ou porque sentia vontade de
me enterrar cada vez mais fundo em terra úmida. O isolamento destruiu o pouco
de esperança e de sanidade que ainda me restavam. Tínhamos brigas constantes,
de início apenas relacionadas às nossas finanças, mas que, com a certeza cada
dia maior de que meu estado era permanente e com a minha impossibilidade de
esconder qualquer pensamento ou revolta, tornaram-se cada vez mais cruéis. Cada
pequena crítica da minha parte em relação a ele ou às crianças era exposta em
mim como tatuagem púrpura, assim como a raiva e a insegurança que tomaram conta
de mim desde que ele deixara de me tocar. Sabia que ele tinha nojo de mim, que
o desejo não sobrevivera àquilo. Eu não era mais uma mulher, eu era uma
experiência, uma tela viva exposta pela casa, um texto a ser analisado por
qualquer um que conseguisse ler sem vomitar.
Um dia, ele e as crianças
simplesmente não voltaram para casa. Chequei cada um dos armários, as roupas
não estavam lá. Passei a viver totalmente sozinha. Não via ninguém, exceto a
vizinha que, três vezes por dia me levava comida. Ela sequer conseguia me
encarar. Por um acaso soube que meu marido a pagava pela caridade, assim como
cuidava das contas de luz e água. Não sabia se me sentia grata ou se o odiava
ainda mais por isso. Seria fácil descobrir, bastava ler o que sentia no meu
corpo, mas eu já havia deixado de olhar para mim mesma há muito tempo.
Não foi difícil tomar aquela decisão. A
autocomiseração e a depressão que me tomavam e alimentavam, bordando o meu
corpo de palavras melancólicas, diziam o que deveria ser feito. Um dia
simplesmente saí de casa, embrulhada no sobretudo habitual, de óculos escuro e
chapéu. Comprei o máximo de cartelas de calmante que consegui, foi mais fácil
do que eu imaginava, e voltei para casa. A luz do sol depois de tanto tempo
escondida em uma casa que parecia cada dia mais escura me fizera mal, me senti
confusa então guardei os comprimidos na gaveta para quando recuperasse a
confiança. Mas não recuperei. Sentir o sol na minha pele transparente me havia
lembrado o que era estar viva, então apenas esqueci o remédio na gaveta e
esperei, dia após dia, um momento em que teria coragem de sair de novo e sentir
o sol na minha pele. Conseguia em determinados dias, depois voltava a sentir
medo e impotência, e me trancava novamente por meses.
Três anos da minha vida se seguiram
assim, entre pulsão de vida e pulsão de morte. Como não tinha com quem
conversar, me habituei a escrever. Inicialmente achava que não teria o que
contar, já que passava a maior parte dos dias trancada em casa, sem nada para
observar exceto os móveis que iam se degradando com a falta de cuidados.
Comecei escrevendo apenas uma palavra ou duas por dia, e não me surpreenderia
se essas correspondessem exatamente às palavras púrpuras que surgiam debaixo da
minha pele e que eu teimava em ignorar. Mas a medida que insistia, sentia que
havia mais e mais para escrever, como se aquelas letras que apareciam no meu
corpo fossem vomitadas para o papel. Logo preenchia páginas inteiras e me vi
obrigada a pedir para a vizinha que me comprasse alguns cadernos. O tempo que
antes gastava vagando pela casa ou entre os lençóis sujos agora era cada vez
mais dedicado à escrita e essa parecia me trazer de volta à mim mesma. Em certo
momento notei que minha pele voltava a adquirir cor e se tornava opaca, mas
estava tão envolvida com o êxtase que despejar todas aquelas palavras no papel
me proporcionara que, a princípio, nem me dei conta do que aquilo significava.
Quanto mais escrevia, mais minha aparência voltava ao normal, até que
finalmente voltei a me encarar no espelho e percebi que, fora os sinais de
desleixo, cansaço e algumas novas rugas, eu voltara a ser exatamente como era
antes da inexplicável doença. No espelho enxergava apenas pele macia e meio
amarelada. Nenhum órgão aparente, nenhuma palavra surgindo pelo corpo. Estava
curada e não sabia por onde retomar. Escrevi muito naquele dia, achei que
poderia preencher mil cadernos, e na manhã seguinte finalmente sai de casa sem
o sobretudo e chapéu. Anos se passaram desde minha cura e a escrita me
acompanhou por todo esse tempo, como um remédio de uso diário, sem o qual
voltaria a adoecer. Me rendi ao único tratamento que tornou minha vida
possível, pelo qual meu corpo permanecia opaco e adquiria peso. A sensação de
ser exposta por dentro aos olhos do mundo, no entanto, nunca mais me
abandonaria.