Nasci com uma irmã gêmea siamesa.
Seu nome era Solidão. Solidão nunca chegou sequer à forma de feto, por algum
motivo inexplicável, ela não se desenvolveu na barriga de nossa mãe,
permanecendo apenas como uma minúscula semente, enquanto eu crescia egoísta e
ávida por preencher todo o espaço macio e acolhedor daquele útero. Devido à
falta de espaço causada pelo meu intenso desenvolvimento, Solidão acabou sendo incorporada
por mim, instalando-se dentro do meu peito, como se fosse um caroço de fruta, e
lá permaneceu. Assim, quando nasci, vim acompanhada da Solidão. Os médicos,
assustados com o caso, tentaram convencer mamãe de que minha irmã deveria ser
retirada de dentro de mim o quanto antes ou futuramente aquela semente, que
jamais chegaria a ser alguém, poderia vir a me causar algum tipo de mal.
Contrária a sacrificar uma de suas filhas, minha mãe se recusou a autorizar a
operação, decidindo que as duas deveriam viver através do meu corpo.
Cresci, portanto, com minha irmã
dentro de mim. Ela era quieta, calada e imóvel, mas às vezes doía e pesava mais
do que todo o meu corpo podia aguentar. Solidão foi minha principal companhia
durante a infância, dividíamos bonecas, brinquedos, vestidos e emoções. Inicialmente
ela não me causava nenhum incômodo, nascera comigo, logo, o fato dela estar
dentro de mim não me gerava estranheza, pelo contrário, me parecia
perfeitamente normal. Logo que aprendi a falar comecei a ter longas conversas
com Solidão e, ainda que inicialmente essas não fizessem sentido, tornaram-se
um hábito. Ela nunca me respondia, apenas escutava e doía. Foi nessa época que
nos tornamos grandes amigas, de forma que tudo o que me acontecia era
detalhadamente relatado em voz alta para minha gêmea. Foi também nesse período
que Solidão começou a me responder e a chorar no meu peito todo o vazio que
sentia devido a sua vida de semente.
Acostumamo-nos a brincar somente as duas. Inicialmente, as crianças da
vizinhança batiam na porta de casa para me convidar para brincar na rua,
convites que eu sempre recusava, por mais que mamãe insistisse. Tinha medo que
as outras crianças não entendessem a natureza única e especial de Solidão e a
excluíssem dos jogos, então, para protegê-la escolhi brincar apenas com minha
irmã. Nossa brincadeira favorita era a ciranda, mas a verdade é que, com apenas
um corpo para nós duas, o jogo acabava por parecer sempre incompleto, enquanto
eu girava sozinha ao redor de mim mesma. Com o passar dos anos perceberia que
minha vida inteira se resumiria nisso, uma dança desengonçada em par com a
solidão.
Conforme
fui crescendo, comecei a sofrer as consequências da escolha que fiz. Minha irmã
e nossos jogos de “faz de conta” não me satisfaziam mais, sentia falta das
outras pessoas, de uma voz que viesse de fora e não apenas de dentro de mim.
Mas Solidão, mal acostumada com os anos de dedicação exclusiva, tornou-se
mimada, ciumenta e possessiva. A cada vez que eu me aproximava de alguém,
Solidão começava a doer e choramingar. Quando entrei na escola, a possibilidade
de me relacionar com inúmeros colegas só piorou a personalidade mesquinha da
minha gêmea. Nunca me acostumaria com os choques que ela aprendeu a me dar
sempre que percebia meu olhar direcionado para outro. Não sei se por causa das
dores ou se por pena da minha irmãzinha, mas acabei desistindo, novamente, de
me aproximar das pessoas. A cada ano, os
métodos de chantagem da minha querida irmã se tornavam mais elaborados e
eficazes, Solidão se deu conta de que a possibilidade de acesso à minha mente
era uma arma mais poderosa do que seus choquinhos infantis, percebeu que de
dentro de mim, vislumbrava um mapa para cada um dos meus medos. Lá do meu
peito, aquele maldito tumor me conhecia melhor do que eu mesma e suas ladainhas
atingiam certeiras cada um dos meus pontos fracos. Cada vez mais manipuladora,
ela assumia um jeito doce com o qual me lançava inúmeras dúvidas, nesses
momentos ela tomava conta de meu corpo e eu é quem me transformava no caroço.
Durante a noite, como se fossem canções de ninar, Solidão murmurava palavras de
desconsolo nos meus ouvidos. Baixinho ela dizia que não importava o que eu
fizesse, ninguém jamais me amaria, não como ela. Ela chorava dentro de mim e
implorava que não a abandonasse. Fraca eu cedia a seus pedidos e acreditava em
suas ameaças. Embalada por aquela melodia sentia medo de que no fundo ela
estivesse certa... “Dorme, dorme, dorme meu anjinho...”
Construímos
uma fortaleza, eu e ela, e não sei quem sentia mais medo da muralha que nos
apartava do resto do mundo um dia a cair. Mas Solidão tinha garras afiadas de
dragão e as soubera cravar em mim sem erro, sem encontrar resistência. Nos
atávamos uma à outra por correntes invisíveis e eu me iludia com a ideia de que
costurar nossas vidas era vital à minha sobrevivência, de modo que eu não sabia
mais dizer se a parasita era ela ou se era eu. Ela se entregava à tirania, e eu
à comodidade.
Lá pelos
vinte anos eu adoeci. Tantos anos sugando uma a outra acabou por desgastar meu
corpo até o limite. Caí de cama, e entre pesadelos e alucinações não quis mais
me recuperar. Emagreci tanto que, pela primeira vez desde que havia nascido,
meu corpo se tornou apertado para abrigar a mim e a minha irmã ao mesmo tempo. Nós
duas passamos a disputar lugar naquele corpo fragilizado, que definhava mais a
cada dia. Ela, apesar de apenas uma minúscula semente, era mais forte, sempre
fora, e assim começou a ocupar o espaço do meu coração. No início doeu. Eu
sentia meu coração sendo esmagado contra meu próprio corpo, sem poder reagir.
Tive febres e convulsões de dor, mas não lutava, não reagia, apenas tremia e
suava enquanto me via perdendo espaço e vida. Mas depois, depois não. À medida
que Solidão expulsava meu coração e saía vitoriosa a dor ia desaparecendo e eu
ia me acalmando, meu coração, enquanto ia deixando de existir, levava consigo
todo o desespero e o peso que eu suportara desde então e que me fizeram
sucumbir, deixando no lugar, agora, apenas um vazio, tão leve, tão doce. Até
que, enfim, Solidão substituiu totalmente meu coração e a dor e a febre se
foram de vez, junto com o desgaste e a angústia que me haviam colocado de cama
e que certamente me levariam à morte. Solidão salvara minha vida.
Demorei um
tempo para me recuperar, para me acostumar com aquela nova sensação de alívio
no peito. Mas dia após dia fui recuperando a cor e a vitalidade. Minha doença
repentina havia sido um susto não apenas para mim, mas também para minha irmã.
À sua maneira egoísta e obsessiva, Solidão me amava e tivera grande medo de me
perder, mesmo que isso possibilitasse a oportunidade única dela, enfim, possuir
exclusivamente meu corpo e viver por inteiro.
Não sei
bem se foi o episódio da minha doença ou o fato de Solidão agora ser meu
coração, mas ela se tornou mais flexível, menos ciumenta, enquanto eu passei a
me perceber mais forte, mais corajosa. Ao tomar o papel do meu coração, nós
duas finalmente aprendemos a nos conciliar e sem os choros e chantagens de
Solidão eu comecei, finalmente, a habitar o mundo que me cercava. No início
tinha muita cautela, mas já sem os choques ao olhar para o outro. Contudo,
apesar de aberta uma brecha na clausura em que me mantive por anos, Solidão
jamais me abandonaria. Ela estaria sempre dentro de mim, mesmo enquanto eu
estivesse nas multidões, como um desespero, um ponto doído que vez ou outra
pede socorro. Ela era agora meu coração e minha força vital. Era, como sempre,
parte de mim e nada poderia mudar isso. E eu já não meu importava. Independente
de todos que pudessem vir a me cercar, Solidão sempre seria minha grande
companheira de estrada. E para onde eu me virasse, ela também iria. Solidão
seria o fardo que eu continuaria a carregar por toda a vida, e no dia, enfim,
que a morte viesse me sorrir, ela também estaria lá, minha companheira fiel,
para seguir comigo.