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"Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema." (Torquato Neto)

31 de janeiro de 2016

Do asfalto

Chego às três da tarde com o asfalto quente derretendo sob meus pés. Sei que não morri pois, ao olhar para trás, vejo pegadas. Não fosse por isso poderia ser um sonho. Não fosse isso e eu poderia não existir.
O carro, que atravessa a avenida às três da tarde, me joga a alguns metros de tal modo que meu corpo afunda no rio negro que é a rua, na torrente infecta que é a cidade. Percebo que existo porque meu corpo estendido faz sombra no asfalto mole, molda a lama preta que me engole. Sei que vivo ao vislumbrar o meu sangue ralo tingindo o meio fio às três horas da tarde de sábado. Se não sangrasse talvez eu estivesse morta. Ou talvez o sangue também não prove nada.
A ferida na minha coxa, onde a placa do carro rasgou a carne, me lembra que eu tenho um corpo, que sou pele, músculos, ossos e cabelo. A náusea que me toma também testifica que eu tenho órgãos, estômago, tripas, fígado. Mas ter um corpo não me faz existir, ainda que eu tenha fibras, ainda que tenha nervos que gritam ao sol das três da tarde de um sábado.
Ao contrário, percebo que existo porque reparo na flor miúda e pálida que brota da rachadura do passeio. Percebo que ela me encara, que aguarda meu movimento final. Partilhamos do mesmo ar enquanto ela me espera. E se ela é e me olha, sei que existo e que sou.